PROFESSORA ANDRÉA

quinta-feira, 24 de julho de 2014

FILOSOFIA: Aristóteles

"Talvez eu venha a envelhecer rápido demais.Mas lutarei para que cada dia tenha valido a pena.
Talvez eu sofra inúmeras desilusões no decorrer de minha vida.Mas farei que elas percam a importância diante dos gestos de amor que encontrei.
Talvez eu não tenha forças para realizar todos os meus ideais.Mas jamais irei me considerar um derrotado.
Talvez em algum instante eu sofra uma terrível queda.Mas não ficarei por muito tempo olhando para o chão.
Talvez um dia o sol deixe de brilhar.Mas então irei me banhar na chuva.
Talvez um dia eu sofra alguma injustiça.Mas jamais irei assumir o papel de vítima.
Talvez eu tenha que enfrentar alguns inimigos.Mas terei humildade para aceitar as mãos que se estenderão em minha direção.
Talvez numa dessas noites frias, eu derrame muitas lágrimas.Mas não terei vergonha por esse gesto.
Talvez eu seja enganado inúmeras vezes.Mas não deixarei de acreditar que em algum lugar alguém merece a minha confiança.
Talvez com o tempo eu perceba que cometi grandes erros.Mas não desistirei de continuar trilhando meu caminho.
Talvez com o decorrer dos anos eu perca grandes amizades.Mas irei aprender que aqueles que realmente são meus verdadeiros amigos nunca estarão perdidos.
Talvez algumas pessoas queiram o meu mal.Mas irei continuar plantando a semente da fraternidade por onde passar.
Talvez eu fique triste ao concluir que não consigo seguir o ritmo da música.Mas então, farei que a música siga o compasso dos meus passos.
Talvez eu nunca consiga enxergar um arco-íris.Mas aprenderei a desenhar um, nem que seja dentro do meu coração.
Talvez hoje eu me sinta fraco.Mas amanhã irei recomeçar, nem que seja de uma maneira diferente.
Talvez eu não aprenda todas as lições necessárias.Mas terei a consciência que os verdadeiros ensinamentos já estão gravados em minha alma.
Talvez eu me deprima por não ser capaz de saber a letra daquela música.Mas ficarei feliz com as outras capacidades que possuo.
Talvez eu não tenha motivos para grandes comemorações.Mas não deixarei de me alegrar com as pequenas conquistas.
Talvez a vontade de abandonar tudo torne-se a minha companheira.Mas ao invés de fugir, irei correr atrás do que almejo.
Talvez eu não seja exatamente quem gostaria de ser.Mas passarei a admirar quem sou.Porque no final saberei que, mesmo com incontáveis dúvidas, eu sou capaz de construir uma vida melhor.
E se ainda não me convenci disso, é porque como diz aquele ditado: “ainda não chegou o fim”Porque no final não haverá nenhum “talvez” e sim a certeza de que a minha vida valeu a pena e eu fiz o melhor que podia."

sábado, 5 de julho de 2014

Filme : Códigos de Guerra



Fonte:http://www.youtube.com/watch?v=n9zenCUhQkI

O Lendário Código Navajo

Com a Segunda Guerra Mundial, enquanto os Ingleses tentavam decifrar a Enigma dos alemães, os Americanos decifravam a Purple dos Japoneses.
Foi graças a essa decifração que os Americanos obtiveram vitórias como a batalha de Midway e a morte do almirante Iamamoto, comandante-chefe da armada japonesa. Tanto a Enigma como a Purple eram cifras muito seguras que, se rigorosamente utilizadas, não teriam sido quebradas.
Máquina de cifra SIGABA
A máquina de cifra SIGABA (M – 143 – C), usada pelas forças armadas americanas, nunca foi quebrada. Porém, a SIGABA tinha o grande defeito da lentidão. A sua operação obrigava a digitar o texto claro letra a letra e ir anotando, de novo letra a letra, o texto cifrado resultante. Em seguida, este texto era transmitido pelo operador de rádio. O operador de rádio que o recebia passava-o ao operador cripto, que o decifrava letra a letra e, só depois, o texto claro era entregue ao destinatário.
Durante as campanhas do Pacífico, muitos comandantes se exasperaram com a lentidão da SIGABA, considerando-a completamente incompatível com cenários intensos e hostis, como eram os combates na selva das ilhas do Pacífico, confinados a pequenas áreas, onde tudo tinha de ser resolvido em fracções de segundo.
Em tais condições a SIGABA tornava-se um estorvo e o inglês castiço e quanto mais profano melhor, passou a ser o último recurso de comunicação no aceso das refregas.
Porém, os americanos tinham como oponentes muitos soldados japoneses que haviam frequentado a “escola americana” e dominavam perfeitamente o inglês, com obscenidades e tudo. Deste modo informações tácticas importantes caíam em poder do inimigo, coisas que os repórteres de guerra iam transpirando para a imprensa.
Entre os milhões de americanos atentos à evolução da contenda, contava-se Philip Johnson, engenheiro reformado e demasiado velho para poder combater, que resolveu contribuir com o seu esforço da maneira que melhor sabia.
Johnson fora criado nas reservas de Navajos do Arizona, motivo por que conhecia perfeitamente a sua língua e a sua cultura. Falava tão fluentemente o Navajo que, com nove anos apenas, traduziu para Theodore Roosevelt, na Casa Branca, as palavras dos líderes Navajos que pediam ao Presidente um tratamento mais justo.
Território Navajo, USA. Pormenor em baixo.
Consciente da impenetrabilidade da língua nativa Navajo, ocorreu a Johnson que esta poderia funcionar como um código, praticamente inquebrável. Se cada batalhão do Pacífico tivesse alguns Navajo americanos como operadores de rádio, podiam ser garantidas comunicações seguras em Navajo claro, sem recurso a cifras.
Apresentou a ideia a James Jones, oficial de Sapadores Telegrafistas, do Camp Elliot, bastando-lhe dirigir ao oficial, atónito, umas quantas frases em Navajo, para o persuadir de que valia a pena reflectir sobre a proposta.
O célebre código Navajo
Duas semanas depois Johnson regressou com dois Navajos para realizar uma demonstração perante a oficialidade da marinha de altas patentes. Os Navajos foram separados um do outro e um deles recebeu meia dúzia de mensagens típicas em inglês, que traduziu para Navajo e as transmitiu nessa língua ao outro Navajo, via rádio. O receptor Navajo voltou a traduzir as mensagens para inglês e levou-as aos oficias, que as compararam com os originais. A operação foi feita sem erros e um projecto-piloto foi autorizado, com recrutamento imediato.
Os Navajos estavam tão ansiosos por combater que, quando começou o recrutamento, mentiam na idade para serem recrutados ou se empanturravam de comida para atingirem o peso mínimo exigido.
Instrução
Quatro meses depois dos bombardeamentos a Pearl Harbor, 29 Navajos, alguns deles com apenas 15 anos, iniciarem o curso de comunicações de oito semanas no Corpo de Fuzileiros.
Grupo de falantes do código Navajo
Os Navajos, como outros povos nativos, não tinham palavras equivalentes para o jargão militar moderno. Para obviar a este problema o corpo de Fuzileiros criou um léxico dos termos Navajo para substituir as palavras inglesas que não tinham equivalente naquela língua. Por exemplo, pelotões foi codificado por “tribos” da lama”, palavras estas que têm termo próprio em Navajo. O léxico originou 274 palavras novas. Para nomes de pessoas, de terras e de palavras difíceis foi criado um alfabeto fonético codificado. Por exemplo “Pacífico” foi traduzido por “pig, ant, cat, ice, fox, cat”, que em Navajo dava “bi-sodish, wol-la-chee, moasi, tkin, ma-e, tkin, moasi”, tudo nomes de coisas ou de animais, em Navajo.
Em oito semanas os formandos tinham aprendido o léxico e o alfabeto, eliminando assim livros e códigos, que pudessem cair nas mãos do inimigo. Os Navajos não tinham qualquer dificuldade em aprender tudo de memória, pois a sua língua não é escrita e tudo que sabem sabem-no de memória, desde as histórias de família, às histórias tradicionais do seu povo.
No fim do curso de formação, os Navajo foram submetidos a um teste. Os emissores traduziam uma série de mensagens de inglês para Navajo e os receptores de Navajo para inglês, utilizando a língua, o léxico e o alfabeto, sendo os resultados perfeitos.
Situação operacional
Na Europa eram enormes as perdas de navios aliados e a Inglaterra corria o risco de perder a Batalha do Atlântico.
Os Japoneses tinham atacado Pearl Harbor, a 7 de Dezembro, de 1941 e, pouco depois, dominavam grandes extensões do Pacífico ocidental.
Pearl harbour
Dominaram a guarnição americana de Guam a 10 de Dezembro, tomaram Guadalcanal, a 13, Hong Kong capitulou a 25 e as tropas dos Estados Unidos nas Filipinas, renderam-se, a 2 de Janeiro de 1942. Para consolidar o seu controlo sobre o Pacífico, os Japoneses precisavam de construir, até ao Verão de 1942, um campo de aviação em Guadalcanal, criando aí uma base de bombardeiros que lhe permitisse destruir a linha de abastecimentos dos Aliados, tornando impossível qualquer contra-ataque.
Os Estados Unidos, prevendo isso, planearam um ataque a Guadalcanal, antes que o aeroporto estivesse concluído.
Guadalcanal (uma das ilhas Salomão)
Os primeiros corpos militares que aí aterram incluíram o primeiro grupo de falantes do Código, como haveriam de ficar conhecidos os Navajo.
P´raí dois minutos…
A entrada dos falantes de Código em acção foi uma bênção para as tropas do Pacífico, mas teve os seus contratempos. Os operadores de rádio convencionais não estavam a par do novo código e enviaram mensagens de pânico para toda a ilha afirmando que os Japoneses estavam a transmitir nas frequências americanas. O coronel responsável susteve as comunicações em Navajo até se convencer de que valia a pena prosseguir com o sistema, dando origem a posteriores relatos como o que se segue, de um veterano Navajo.
Navajos em operação
Conta ele: “O Coronel teve uma ideia: Disse que nos manteria se eu fosse mais rápido do que o seu código branco – uma coisa cilíndrica mecânica que fazia tique-tique-tique. Enviámos ambos mensagens e recebemos ambos as respostas e tínhamos de ver quem era capaz de descodificar primeiro as suas respostas.
Perguntaram-me: Quanto tempo vais levar? Duas horas?
P´raí dois minutos, respondi. Levei quatro minutos e meio.
Quando entreguei as respostas, perguntei: meu Coronel quanto tempo vai levar a desistir dessa coisa cilíndrica branca? Ele não respondeu, acendeu o cachimbo e afastou-se. Mas nós ficámos”.
Gen Douglas MacArthur com um grupo de falantes de Código Navajo, na Ilha de Prima, no Pacífico
A fama dos falantes do Código depressa se espalhou. Os Navajos passaram a ser incorporados em todas as divisões de fuzileiros e mais forças os pediram. A sua guerra de palavras não demorou em transformá-los em heróis. Os soldados ofereciam-se para lhes carregar os rádios e as espingardas e tinham mesmo guarda-costas pessoais, em parte para os proteger dos seus próprios camaradas, que algumas vezes os confundiram com soldados japoneses.
Ao todo havia 420 falantes em código Navajo, cuja bravura como combatentes foi reconhecida, mas o seu papel de garantir comunicações seguras era matéria classificada. O Governo proibiu-os de falar sobre o seu trabalho, ficando o seu contributo excepcional por divulgar.
Grupo de antigos militares Navajos
Em 1968, o código Navajo deixou de ser secreto e, no ano seguinte, os falantes do Código ainda vivos, fizeram a sua primeira e maior confraternização.
Falantes de Código Navajo da II G. M., agora com 80/90 anos, desfilaram na  Parada do Dia dos Veteranos, em New York City, como forma de  demonstrar a sua contribuição para o esforço de guerra.
Medalha de Honra do Congresso, concedida em 2001
Em 1982, receberam honras nacionais, quando o Governo dos Estados Unidos instituiu o 14 de Agosto como o “Dia Nacional dos Falantes do Código Navajo”.
Ocala Park, aos falantes de Código Navajo
O Código Navajo ufana-se de outra glória: É um dos raros que ao longo da história nunca foi quebrado.
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O Ten General Seizo Arisue, chefe dos serviços secretos japoneses, admitiu que embora tivessem quebrado o código da força aérea americana, não tinham provocado qualquer dano ao código Navajo.
Nota: Também as FFAA portuguesas tiveram, nas diversas frentes de guerra do Ultramar, episódios de transmissões de mensagens em código dignos de registo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

A partilha da África

No fim do século 19, países europeus repartiram o continente africano entre si e o exploraram durante quase 100 anos. Os invasores se foram, mas deixaram os efeitos nefastos de sua presença


Foto: Há 130 anos, em 1884, os países europeus repartiram o continente entre si, na Conferência de Berlim, e o exploraram durante quase 100 anos. 

Os invasores se foram, mas deixaram os efeitos nefastos de sua presença. Entenda o processo de dominação dos povos africanos: http://abr.ai/1mKOHDv

Ao encerrar a Conferência de Berlim, em 26 de fevereiro de 1885, o chanceler alemão Otto von Bismarck inaugurou um novo – e sangrento – capítulo da história das relações entre europeus e africanos. Menos de três décadas após o encontro, ingleses, franceses, alemães, belgas, italianos, espanhóis e portugueses já haviam conquistado e repartido entre si 90% da África – ou o correspondente a pouco mais de três vezes a área do Brasil. Essa apropriação provocou mudanças profundas não apenas no dia-a-dia, nos costumes, na língua e na religião dos vários grupos étnicos que viviam no continente. Também criou fronteiras que, ainda hoje, são responsáveis por tragédias militares e humanitárias.

O papel da conferência, que contou com a participação de 14 países, era delinear as regras da ocupação. “A conferência não ‘dividiu’ a África em blocos coloniais, mas admitiu princípios básicos para administrar as atividades européias no continente, como o comércio livre nas bacias dos rios Congo e Níger, a luta contra a escravidão e o reconhecimento da soberania somente para quem ocupasse efetivamente o território reclamado”, afirma Guy Vanthemsche, professor de História da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, e do Centro de Estudos Africanos de Bruxelas.

A rapidez com que a divisão se deu foi conseqüência direta da principal decisão do encontro, justamente o princípio da “efetividade”: para garantir a propriedade de qualquer território no continente, as potências européias tinham de ocupar de fato o quinhão almejado. Isso provocou uma corrida maluca em que cada um queria garantir um pedaço de bolo maior que o do outro. “Em pouco tempo, com exceção da Etiópia e da Libéria, todo o continente ficou sob o domínio europeu”, diz a historiadora Nwando Achebe, da Universidade Estadual do Michigan. A Libéria, formada por escravos libertos enviados de volta pelos Estados Unidos, havia se tornado independente em 1847. Na Etiópia, a independência foi garantida depois da Conferência de Berlim, com a vitória do exército do imperador Menelik II sobre tropas italianas na batalha de Adwa, em 1896.

O interesse europeu pela África vinha de muito tempo antes da conferência. No século 15, os portugueses já haviam chegado aos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, iniciando sua ocupação do continente (que depois se estendeu a Angola e Moçambique). Os britânicos ocuparam partes da atual África do Sul, do Egito, do Sudão e da Somália no século 19. No mesmo período, os franceses se apoderaram de parte do Senegal e da Tunísia, enquanto os italianos marcavam presença na Eritréia desde 1870. Em 1902, França e Inglaterra já detinham mais de metade do continente.

Tiros e mentiras

A ocupação não se deu somente com a força das armas de fogo, que eram novidade para muitos dos povos subjugados. A trapaça foi largamente usada para a conquista e manutenção dos territórios. O rei Lobengula, do povo Ndebele, é um exemplo: assinou um contrato em que acreditava ceder terras ao magnata britânico Cecil Rhodes em troca de “proteção”. O problema é que o contrato firmado pelo rei não incluía a segunda parte do trato. O monarca nem percebeu, pois era analfabeto e não falava inglês. Apesar dos protestos de Lobengula, que acreditava que a palavra valia alguma coisa entre os recém-chegados, o governo da Inglaterra se fez de desentendido. Apoiou a exploração do território Ndebele, no atual Zimbábue, de onde Rhodes tirou toneladas de ouro.

O mais famoso entre os trapaceiros, no entanto, foi o rei Leopoldo II, que conseguiu passar a perna em africanos e europeus. Soberano de um pequeno país, a Bélgica, não tinha recursos nem homens para ocupar grandes territórios. Por isso, criou associações que se apresentavam como científicas e humanitárias, a fim de “proteger” territórios como a cobiçada foz do rio Congo. “Graças a hábeis manobras diplomáticas, ele conseguiu obter o reconhecimento, por todas as potências da época, de um ‘Estado Livre do Congo’, do qual ele seria o governante absoluto”, afirma o professor Vanthemsche. Leopoldo dominou com mão de ferro o Congo, usando métodos violentos para conseguir extrair o máximo que pudesse para aumentar sua riqueza pessoal.

Mas o principal método utilizado pelos europeus foi o bom e velho “dividir para dominar”. A idéia era se aproveitar da rivalidade entre dois grupos étnicos locais (ou criá-la, se fosse inexistente) e tomar partido de um deles. Com o apoio do escolhido, a quem davam armas e meios para subjugar os rivais, os europeus controlavam a população inteira. “Pode-se dizer que todas as potências conduziam a conquista da mesma forma: através da força bruta, dividindo para dominar e usando soldados que eram principalmente africanos e não europeus”, diz Paul Nugent, professor de História Africana Comparada e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Edimburgo, na Escócia.

O método usado pelos colonizadores provocou tensões que até hoje perduram, pois transformou profundamente as estruturas sociais tradicionais da África. “Formações de grupos flexíveis e cambiantes foram mudadas para ‘estruturas étnicas’ bastante rígidas”, afirma Vanthemsche. O exemplo mais extremo dessa fronteira imaginária criada pelos europeus é o de tutsis e hutus, de Ruanda. Os tutsis foram considerados de “origem mais nobre” pelos colonizadores (primeiro alemães, depois belgas), e os hutus foram colocados em posição de inferioridade. Os tutsis mantiveram o poder mesmo após a saída dos belgas. Em 1994, 32 anos após a independência de Ruanda, cerca de 1 milhão de pessoas morreram no conflito em que os detentores do poder foram perseguidos pelos até então marginalizados hutus.

As fronteiras territoriais também foram delineadas sem respeitar a disposição da população local, com base nos interesses dos europeus. “Eles recorriam a noções arbitrárias como latitude, longitude, linha de divisão das águas e curso presumível de um rio que mal se conhecia”, afirma o historiador Henri Brunschwig em A Partilha da África Negra. E essas fronteiras ainda sobrevivem. Segundo o geógrafo francês Michel Foucher, cerca de 90% das atuais fronteiras na África foram herdadas do período colonial. Apenas em 15% delas foram levadas em consideração questões étnicas. Há ainda mais de uma dezena de fronteiras a serem definidas, segundo Foucher.

O Saara Ocidental é o único caso de território africano que ainda não conseguiu a independência. Em 1975, depois de décadas explorando o fosfato da região, a Espanha o abandonou. No mesmo ano, o Marrocos invadiu o país. Houve resistência, e a guerra durou até 1991. Desde então, a Organização das Nações Unidas tenta organizar um referendo para que a população decida se quer a independência ou a anexação pelo Marrocos.

Para os países africanos, ver-se livre dos europeus não significou uma melhoria de sua situação. Ao contrário: em muitos lugares, a independência provocou guerras ainda mais sangrentas, que contaram com a participação das antigas metrópoles coloniais. Um exemplo é a Nigéria. Seis anos após a independência do país, em 1960, os ibos, que haviam adotado o cristianismo, declararam a secessão do território nigeriano de Biafra. Foram apoiados por franceses e portugueses, interessados nas ricas reservas de petróleo da região. Os hauçás e fulanis, muçulmanos que dominavam o cenário político do país, lutaram pela unidade apoiados pelos ingleses. O resultado foi uma guerra civil em que quase 1 milhão de nigerianos morreram, a grande maioria de fome – até hoje o país é palco de embates religiosos e políticos.

Na marra

Não se sabe exatamente quantos grupos étnicos havia na África quando os colonizadores chegaram, mas acredita-se que fossem por volta de mil. “O que sabemos sugere que as formações políticas e grupais eram muito mais fluidas e a variação lingüística era muito maior do que na era colonial”, diz o historiador Keith Shear, do Centro de Estudos Africanos Ocidentais da Universidade de Birmingham. Línguas foram adotadas em detrimento de outras, o que provocou o nascimento de elites. “A chegada de missionários e a introdução de escolas formais fizeram com que dialetos específicos fossem selecionados para traduzir a Bíblia. Estabeleceram-se ortografias oficiais, provocando homogeneidade lingüística”, afirma Shear. Os que falavam a língua do grupo majoritário tiveram mais facilidades num governo centralizado e dominado por uma só etnia.

Se por um lado alguns dialetos desapareceram, o mesmo não ocorreu com a diversidade étnica. “Grupos étnicos não foram eliminados durante o domínio colonial, apesar de os alemães terem tentado realizar o primeiro genocídio na Namíbia”, diz Paul Nugent. Teria sido possível, inclusive, o surgimento de outros povos. “Muitos historiadores defendem a tese de que novos grupos foram criados durante o período colonial, pois as pessoas começaram a se autodefinir de novas formas. Por exemplo: os ibos da Nigéria e os ewes de Gana e do Togo apenas passaram a se denominar desse modo durante o período entre as duas Grandes Guerras Mundiais”, afirma Nugent.

A colonização comprometeu duramente o desenvolvimento da África. Hoje o continente abriga boa parte dos países mais pobres do planeta. “No plano político, o legado do colonialismo inclui a tradição de administração de cima para baixo, a persistência de burocracias que fornecem poucos serviços e um baixo senso de identidade e interesse nacional. Os Estados são geralmente fracos, ineficientes e brutais”, diz Shear. “Economicamente, o colonialismo produziu, em sua maior parte, economias dependentes, monoculturistas e não integradas, que atendem prioridades externas e não internas.”
A situação atual dos países africanos pode ser atribuída à pressa que os colonizadores tiveram em transformar a realidade local. Isso fez com que o continente pulasse etapas importantes. “O maior problema é que, em apenas algumas décadas, as sociedades tradicionais africanas foram lançadas em uma situação totalmente desconhecida. Você não pode criar um sistema capitalista e Estados democráticos de um dia para outro, em poucas gerações. As próprias sociedades tradicionais européias precisaram de séculos para chegar a esse resultado”, diz Guy Vanthemsche. Essa chance nunca foi dada aos africanos.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Saiba mais sobre a campanha frustrada de Napoleão em direção à Rússia

Há 200 anos, Napoleão foi protagonista de um dos maiores desastres da história militar. Viu seu exército ser dizimado na Rússia e perdeu a fama de invencível. A campanha foi o primeiro passo rumo ao fracasso da França napoleônica

 

Era um belo dia de sol quando os soldados da França cruzaram o rio Neman, na atual fronteira da Polônia com a Lituânia, aos gritos de "Vive l'Empereur!", na confiança de serem o maior e mais temido exército que o mundo havia visto. Estavam ali para dar uma surra, não para guerrear - o inimigo só tinha um terço de suas forças e estava dividido. E, o mais importante, não tinha Napoleão como líder. Eram 690 mil soldados de várias nacionalidades, dos quais só 300 mil eram franceses. Os demais eram poloneses, austríacos, italianos, prussianos e até 2 mil portugueses, recrutados entre simpatizantes do imperador. Como era comum na época, seguia com eles um cortejo de comerciantes, prostitutas, médicos e até esposas e filhos dos militares. Nem soldados, nem civis, nem Napoleão poderiam imaginar àquela hora, mas apenas um em cada sete deles voltaria vivo daquela campanha.


A Rússia não é para principiantes e isso não era segredo para Napoleão e seus soldados. Pouco mais de um século antes, em 1709, o rei Carlos 12, da Suécia, havia perdido seu exército na Rússia de frio e fome. Por isso, o exército francês invadiu a Rússia no auge do verão, em 24 de junho de 1812. E o verão foi seu primeiro inimigo. As temperaturas frequentemente superam os 30 ºC, enquanto as noites duram apenas 3 horas - foi "aproveitando" esse sol todo que Napoleão fez seus soldados marcharem 112 km nos dois primeiros dias da campanha. A essa velocidade, as carroças de suprimento ficaram para trás. Desidratada pela caminhada e sem alimentos e água, a tropa viu-se forçada a beber dos riachos pantanosos da região, pegando diarreia. As primeiras vítimas tombaram ao lado das fontes de água - e os soldados que vinham atrás também ficaram doentes.

A pressa era justificada pela estratégia. "Napoleão não foi à Rússia para conquistar", diz o historiador César Machado Domingues, editor da Revista Brasileira de História Militar. Ele queria simplesmente aniquilar o exército russo e conseguir uma aliança forçada com o czar Alexandre 1º. O primeiro alvo era a cidade de Vilna, atual capital da Lituânia, onde estava o comando das tropas russas, inclusive o czar. Napoleão entrou na cidade em 28 de junho, mas o comando russo havia se mudado. Não só isso. Também haviam esvaziado armazéns e paióis de pólvora e queimado plantações nos arredores.

Os franceses esperavam fazer o mesmo que em suas guerras anteriores: tomar alimentos das cidades e fazendas pelo caminho. O que sobrava da destruição russa só era aproveitado pelos soldados da frente da coluna - quem vinha atrás passava fome. Um comércio clandestino e gangues de ladrões passaram a agir. Os cavalos, que morriam às centenas, se tornaram o prato principal.

A campanha prosseguiu assim - os russos regredindo e queimando tudo, os franceses sangrando lentamente de doenças, fome, sede, ataques de guerrilha e deserção massiva. "No caminho para Moscou, ainda no verão, os franceses perdiam em média 6 mil soldados por dia", escreveu o médico e historiador Achilles Rose (1839-1916) em seu livro A Campanha de Napoleão na Rússia, Anno 1812.

Após mais uma conquista estéril na cidade de Smolensk, em 18 de agosto, Napoleão decidiu rumar para Moscou. Mas isso os russos não aceitariam e, enfim, Napoleão teve sua batalha. A mais sangrenta de todas as guerras napoleônicas, a Batalha de Borodino, em 7 de setembro - dos 250 mil participantes, 80 mil morreram. Os russos recuaram mais uma vez, mas não foram aniquilados. Em 14 de setembro, Moscou pertencia a Napoleão. "Napoleão deve ter imaginado que havia vencido", diz César Domingues. Ele sentou-se no trono do Kremlin e esperou a rendição do czar. No mesmo dia, começou um incêndio, que os russos jamais admitiram ter causado, que destruiu 75% da cidade em 4 dias.

O tempo ia esfriando, o Exército russo, se recompondo, e o czar não ofereceu paz. Em 18 de outubro, quando os franceses iniciaram a retirada, a temperatura estava por volta de 0 ºC. O plano era voltar pelo sul, mas os russos cortaram o caminho e os militares se viram forçados a voltar por onde vieram, começando pelo campo de Borodino, crivado de homens e cavalos em decomposição da batalha de um mês e meio antes.

Se algo havia sobrado da destruição causada pelos russos, já havia sido consumido pelos franceses na ida. Diante de um frio que chegaria a -40 ºC, ninguém tinha roupas de frio, exceto as roubadas de Moscou - inclusive chapéus, sapatos, mantos e echarpes femininas. Os cavalos não tinham ferraduras adaptadas ao gelo, como as dos russos - escorregavam e quebravam as patas ou simplesmente não conseguiam puxar as cargas.

A tropa se converteu em um bando de desesperados. Cavalos passaram a ser atacados e a carne era comida crua. Em seu livro de memórias, o sargento Adrien Bourgogne relata que um carro-ambulância teve seus cavalos devorados à noite pela tropa. De manhã, os feridos foram largados no caminho. Os soldados também tiravam nacos de carne de animais ainda vivos - amortecidos pelo frio, eles não reagiam. Bourgogne conta que um bando de soldados havia se fechado em um celeiro para evitar o frio. Eles se acumularam na porta para evitar que mais gente entupisse o lugar. Durante a noite, o celeiro pegou fogo. Quando o incêndio acabou, alguns soldados tomaram coragem de avançar para os corpos dos colegas, providencialmente "assados". O soldado alemão Jakob Walters (1788-1864) escreveu que viu um soldado que se aliviava de diarreia à beira da estrada ter suas calças roubadas - a vítima morreu de frio horas depois.

Os franceses fugiam em desespero, mas os russos não haviam se esquecido deles. Em 26 de novembro, as tropas napoleônicas tiveram de atravessar o rio Berezina (na atual Bielorrússia). Os russos descobriram sua posição e atacaram no dia 29, com 60 mil homens, contra 40 mil soldados divididos entre as duas margens. Os franceses conseguiram escapar com seu imperador, destruindo as pontes improvisadas que haviam feito - mas ainda havia muitos deles do outro lado. Entre 25 mil e 45 mil civis e militares morreram ali - 10 mil deles empurrados pelos cossacos para dentro do rio congelado.

Em 14 de dezembro, o esfarrapado exército de Napoleão chegou à Polônia. Sua tropa principal tinha 22 mil soldados, dos 690 mil que entraram na Rússia. O total de sobreviventes é cerca de 100 mil, contando as outras colunas do exército. Pessoas, armas e cavalos podiam ser substituídos, mas o dano irrecuperável foi à reputação de invencível de Napoleão, que acabou deposto e exilado na ilha de Elba (Itália) em 1814.

Não foi apenas Napoleão que não aprendeu com seus antecessores. Em 22 de junho de 1941, Hitler invadiu a União Soviética, também esperando uma campanha fulminante que acabasse antes do inverno. Os nazistas estavam às portas de Moscou em dezembro, mas então veio o inverno, matando 150 mil alemães em poucos dias. Em homenagem aos serviços prestados, os russos deram uma promoção a seu inverno. Lá ele é conhecido como General Moroz - o temido General Inverno.


Bárbaros pelo czar


Os cossacos não costumam entrar na conta do efetivo do Exército russo, mas como adicionais (costuma-se afirmar algo como "100 mil soldados e 20 mil cossacos"). Na verdade, eles nem são exatamente russos. Cossacos são sociedades independentes, democráticas e militaristas, originalmente de povos eslavos, que depois passaram a aceitar aventureiros de qualquer país - particularmente quem falasse línguas, soubesse fazer contas ou simplesmente fosse alfabetizado, talentos raros entre os nascidos entre eles. Os cossacos não eram súditos, mas aliados do czar - e se voltaram contra os russos em algumas ocasiões, como a Revolta de Pugachev, de 1774. Suas tropas tinham sua própria hierarquia e generais. Mas elas eram um tanto indisciplinadas, por isso os russos preferiam usá-los como forma de bagunçar e aterrorizar as linhas inimigas, e não como força de choque ou cavalaria regular. Os cossacos foram integrados à sociedade soviética à força por Josef Stalin, na década de 30, mas os descendentes ainda se orgulham do passado independente e aventureiro.

 

terça-feira, 1 de julho de 2014

Conheça a história de Hipácia da Alexandria

Quem foi Hipácia, matemática, astrônoma e uma das mais importantes pensadoras da Antiguidade, morta por cristãos

Numa tarde de março do ano 415, durante a quaresma, uma mulher de 60 anos é tirada de sua carruagem por uma multidão enfurecida e arrastada até a igreja de Cesarión, antigo templo de culto ao imperador romano César, em Alexandria, no Egito. Lá é despida e tem sua pele e carne arrancadas com ostras (ou fragmentos de cerâmica ou azulejo, segundo outra versão). Acusada de bruxaria, é destroçada viva pela turba desgovernada. Já morta, arrancam seus braços e pernas. O restante do cadáver é queimado em uma pira nos arredores da cidade. Era o fim da trajetória impressionante da primeira mulher matemática da História e uma das principais filósofas da Antiguidade: Hipácia.

A intelectual, professora carismática que inspirou alguns dos grandes cérebros de seu tempo, tinha influência em diversas esferas da vida pública. O prefeito da cidade, Orestes, indicado por Roma, a consultava antes de muitas de suas decisões. Por isso mesmo, ela tornou-se um obstáculo para a sede de poder de Cirilo, bispo de Alexandria, inimigo político do também cristão Orestes e, possivelmente, o mentor do assassinato da filósofa. Quem foi essa mulher, capaz de se destacar num mundo em que o intelecto era propriedade masculina? Há controvérsia sobre o ano de seu nascimento: 355 é o mais aceito. Fala-se também em 370. Nesse caso, ela teria apenas 45 anos ao ser linchada. Foi criada pelo pai, Teón - grande matemático, astrônomo e diretor do Museu de Alexandria -, nesse ambiente de estudo e pesquisa. Ela superou o mestre na ciência dos números e ainda tornou-se uma expoente do pensamento filosófico neoplatônico. É considerada a última intelectual de destaque da capital egípcia, centro da cultura grega no mundo helenístico.


Bela e sábia, Hipácia cresceu dentro do Museu de Alexandria (ilustração: Ricardo Cammarota)
"Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos", diz o historiador Sócrates, o Escolástico, na História Eclesiástica, escrita no século 5.

Mulher de enorme beleza, adotou o ascetismo como norma de vida: vestia-se apenas com o manto dos filósofos, uma espécie de túnica branca. Não acumulava riquezas e foi celibatária até o fim da vida. Um episódio ilustra sua rigidez moral: um aluno (eram todos homens), apaixonado, insiste em cortejá-la. Hipácia, então, mostra a ele um de seus panos higiênicos (usados na menstruação): "É isto que tu amas na verdade e não a beleza por si mesma".

Hipácia foi a principal representante do neoplatonismo de seu tempo. Dedicava-se a pensar o mundo das ideias em relação ao mundo físico, a investigar se a alma era una ou dividida, a partir de questões metafísicas levantadas pelo filósofo Plotino (205-270). Ensinava em cursos fechados, mas fazia também conferências abertas que atraíam homens poderosos, como Orestes, e visitantes de Roma, Atenas e outras cidades. "Orestes se tornou amigo e confidente de Hipácia. Encontravam-se frequentemente, discutindo não só suas palestras mas também assuntos municipais e políticos. Isso a colocou claramente ao lado dele na luta contra Cirilo. Ela deve ter parecido uma grande ameaça para Cirilo, pois seus discípulos tinham altos cargos, tanto em Alexandria como fora", diz o matemático americano Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides.

Política x religião
Nascida numa cidade em que diversas religiões conviviam, ela era pagã. Pouco ia ao templo. Tinha entre seus pupilos muitos alunos cristãos, como Sinésio de Cirene, futuro bispo de Ptolemaida. Suas cartas para Hipácia e outros discípulos são o principal registro sobre ela, a quem adorava. A religião nunca foi um empecilho entre eles.

"No momento em que vive Hipácia, temos uma sociedade em tensão por causa das mudanças político-religiosas. Há vários relatos sobre hostilidades entre judeus e cristãos e cristãos e pagãos. A relativa tolerância religiosa de outrora foi inteiramente abalada pelo radicalismo. Seitas foram expulsas de Alexandria e, cada vez mais, a população era insuflada contra elementos de destaque que poderiam ser considerados uma ameaça à expansão de poder do cristianismo", afirma a professora de Letras Clássicas Fernanda Lemos de Lima, da Uerj, coordenadora do grupo de estudos Farol de Alexandria.

É nesse contexto que Cirilo resolve investir contra a filósofa. Em 413, o bispo já havia expulsado os novacianos e os judeus de Alexandria. Pouco depois, monges atiçados por ele atacaram Orestes, com quem travava uma violenta disputa por poder e influência nos rumos da capital do Egito. Convencido de que Hipácia representava a grande força por trás do prefeito, Cirilo instigou seus seguidores a espalharem pela cidade o boato de que a filósofa era uma bruxa, que usava magia negra para controlar Orestes. A calúnia visava exatamente apavorar a população, diz a historiadora Maria Dzielska em Hipatia de Alejandría (sem edição no Brasil): "Em seu círculo não se utilizam métodos mágicos para entender a natureza do mundo; não há menção de que se ofereçam sacrifícios aos deuses, nem de que se utilizem objetos de culto, nem cerimônias noturnas, nem estátuas que se animam, nem nada disso". Mas a mentira prosperou. No século 7, o bispo cristão João de Nikiu registra em suas Crônicas: "E naqueles dias havia em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipácia, e ela era devota a todas as sortes de magia, astrolábios e instrumentos musicais, e ela iludiu muita gente através de truques satânicos. E o governante da cidade a respeitava muitíssimo; pois ela o havia iludido através de sua magia".

A boataria avançou entre as camadas mais simples da população. Até que, liderada por um homem conhecido como Pedro, o Leitor, uma turba decidiu linchá-la. Para Dzielska, não há dúvida de que foi um assassinato político, já que a autoridade e conexões da matemática "proporcionavam apoio ao representante da autoridade estatal em Alexandria, em detrimento de Cirilo". A morte da última grande filósofa da Antiguidade clássica deixou toda uma tradição lógica na penumbra durante séculos, até ser redescoberta pelo Renascimento.

Não se sabe nada de Orestes depois da morte de sua mestra. Provavelmente fugiu, deixando a cidade à mercê de Cirilo, que fechou templos e proibiu a prática de qualquer religião ou seita fora do cristianismo tradicional. Ficou à frente da igreja local por mais 20 anos e hoje, canonizado, é conhecido como São Cirilo de Alexandria.

Recentemente, a saga de Hipácia foi resgatada em Agora, de Alejandro Amenabar. O filme, estrelado por Rachel Weisz, foi lançado no último festival de Cannes. Mas a maior parte do trabalho da intelectual se perdeu. Sabe-se que ela escreveu comentários sobre duas importantes obras gregas: a Aritmética, de Diofanto, e as Seções Cônicas, de Apolônio. Comentou ainda o Cânon Astronômico, já que dominava também a astronomia. Acreditava-se que tudo isso havia se perdido num dos incêndios da biblioteca de Alexandria e na determinação de Cirilo em banir a influência da filósofa. Hoje, pesquisadores analisam se parte dos comentários de Teón ao Cânon não seria, de fato, de sua filha. Mais: apenas seis dos 13 livros da Aritmética de Diofanto sobreviveram, e poderiam todos ter origem nos textos de Hipácia. Sabe-se ainda que ela era capaz de construir um astrolábio e um hidrômetro. Da obra filosófica, nada restou escrito por ela. Muito do que discutia com os pupilos era mantido em segredo, por princípio. O que se conhece vem das cartas de Sinésio, ele próprio bispo cristão, mas capaz de referir-se a uma pagã como "minha mãe, minha irmã, mestre e benfeitora minha!"

"Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipácia, filha do filósofo Teón, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos da época tendo progredido na escola de plantão e plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber os ensinamentos." (Sócrates, o escolástico, século 5)

"(...) ela era devota a todas as sortes de magia (...) e ela iludiu muita gente através de truques satânicos." (João de Nikiu, século 7)

Glória e cinzas

A cidade fundada por Alexandre e sua magnífica biblioteca

Alexandria começou a ser construída em 332 a.C., por Alexandre, o Grande, e em poucos anos se tornou um polo de matemática, filosofia e ciência gregas. Meio século mais tarde, Ptolomeu II ergueu uma enorme biblioteca e um museu - que funcionou como centro de pesquisa. A biblioteca se desenvolveu de forma pouco ortodoxa. "Ptolomeu II, querendo a primeira tradução grega do Antigo Testamento, ‘comissionou’ o trabalho prendendo 70 doutos judeus em celas na ilha de Faros. Ptolomeu III escreveu a todos os soberanos do mundo pedindo emprestados seus livros, e depois ficou com eles", diz Leonard Mlodinow em A Janela de Euclides. A biblioteca reuniu entre 200 mil e 500 mil papiros e, com o museu, transformou a cidade no maior núcleo intelectual da época. O acervo se perdeu aos poucos. Primeiro, sob ataque das tropas de Júlio César, em 48 a.C. No período cristão foram sucessivos golpes e incêndios. Até que, em 640, a ocupação do califa Omar destruiu praticamente toda a coleção.

Caça às bruxas

A perseguição às mulheres "encantadas" na Antiguidade

Muito antes das fogueiras da Inquisição, a perseguição às mulheres associadas à feitiçaria era comum. Em 430 a.C., em Atenas, Eurípides caracteriza Medeia como uma forasteira adepta da magia. "Já havia um modelo de feiticeira na literatura grega arcaica, como na Odisseia, de Homero, com Circe, Calipso e Helena", diz a historiadora Maria Regina Cândido, autora de A Feitiçaria na Atenas Clássica. Em busca de alívio para problemas como cólicas e as dores do parto, as mulheres aprenderam a usar ervas medicinais. "Elas eram solicitadas para realizar a 'magia amorosa' através de chás e misturas. Mas, em excesso, as poções podiam causar a morte ou a impotência masculina. As questões iam parar nos tribunais sob acusação de prática de feitiçaria, e a sentença era a morte", afirma a historiadora.

Saiba mais

Site

www.livius.org/su-52/synesius/synesius _correspondents.html#hypatia

Reproduz, em inglês, cartas de Sinésio de Cirene a Hipácia.

Livro

Hypatia de Alejandría, Maria Dzielska, Biblioteca de Ensayo Siruela, 2006
Talvez a mais completa biografia existente sobre a filósofa.

Post-Scriptum

A mulher alexandrina

A evolução do papel feminino a partir das culturas grega e egípcia

Para compreender o espaço do feminino na Alexandria do Egito, é interessante tomar como parâmetro de comparação duas culturas anteriores: a egípcia e a grega, bases do mundo alexandrino.

Na esfera privada do Egito faraônico, a mulher apresenta uma relativa liberdade, traduzida, por exemplo, pela possibilidade de se divorciar e manter parte de seus bens. Já na esfera pública, aparece como sacerdotisa, destacando-se em uma série de cultos reais e, em alguns momentos, como regente que usa as vestes de faraó, como Hatshepsut. Se avançarmos até o Egito ptolomaico, em que os governantes de origem macedônica adotaram os títulos dos faraós anteriores, Arsinoé II e Cleópatra VII também figuram como mulheres poderosas.

Mesmo com o advento da democracia na Atenas do século 5, a mulher, juridicamente, não gozava os direitos de "cidadã", e não teria, em geral, acesso à educação. Havia, é fato, um espaço de relevo em cerimônias religiosas. Todavia, em termos de ocupação do espaço público, as mulheres abastadas não dispunham de liberdade de circulação, realidade que se mostrava distinta no que diz respeito às classes mais pobres, em que as mesmas precisavam frequentar as ruas para garantir o sustento da família.

Em geral, sabe-se que a mulher, no período helenístico (324- 31 a.C.) e, especialmente, no Egito, apresenta-se de maneira diferente em relação à da Atenas clássica: mais educada, com mais visibilidade, liberdade de trânsito e, no âmbito da realeza alexandrina, com acesso ao poder, auxiliando seus maridos na administração do estado. A condição feminina elevou-se em todo o mundo helenístico. Isso fica evidente na literatura e em outras fontes primárias, como contratos de casamento. Na literatura, há personagens femininas transitando pela cidade em dia de festa (como em As Siracusanas, de Teócrito) ou transformadas em deusas, como Berenice II (esposa de Ptolomeu III), que Calímaco de Cirene, em um epigrama, inclui no grupo central de divindades femininas.

No período de dominação romana do Egito - após a vitória de Augusto sobre Cleópatra e Marco Antônio, que resulta na anexação do Egito aos domínios de Roma (31-30 a.C.) -, a mulher mantém igualmente um status mais elevado que aquele da Atenas clássica, especialmente em termos jurídicos. Há fragmentos de papiros com registros de processos, cartas e negócios que demonstram a busca de mulheres por direitos previstos em lei, como o de autonomia na gestão de seus bens. Um papiro egípcio do século 3 (Oxyrhynchus papyrus 1467. G) chama atenção pelo fato de uma mãe de três filhos pleitear o direito de exercer as funções de kyrios (senhor da casa). O argumento da peticionária era o fato de ser uma mulher educada, capaz de gerir seus negócios. A ideia de haver uma lei que favorecesse mulheres letradas chama atenção sobre o acesso que o sexo feminino tinha ao conhecimento no período de dominação romana. Interessante observar nesses papiros como mulheres romanas, gregas e egípcias são apresentadas como senhoras de bens consideráveis, situação bem diferente da vivida pela mulher da Atenas clássica, mas não tão diferente da experienciada pelas egípcias do período faraônico.

No âmbito da literatura do período imperial romano, o romance grego, que se desenvolve a partir do século 1 a.C., apresenta uma simetria entre protagonistas femininos e masculinos. Além disso, as personagens femininas desempenham papéis de destaque nas diegeses, seja como as protagonistas que, perto ou longe de seus pares amorosos, vencem os inúmeros desafios através de atitudes inteligentes e de boa argumentação, seja como "vilãs" astuciosas.

A figura da mulher-filósofa - única mulher a dirigir o Museu de Alexandria - merece ser lembrada não para falar de uma regra de liberdade feminina na sociedade alexandrina antes do período bizantino, mas sim para fazer com que se possa refletir como houve um crescimento considerável do campo de atuação do feminino nesse mundo pagão alexandrino, que encontra seu ocaso simbólico no assassinato de Hipácia, sophia da ágora alexandrina.