Da hora em que você acorda até o momento de voltar para a cama, seu
cotidiano se compõe de uma série de atitudes e comportamentos que
parecem naturais. Pois não são. O que você é no seu dia a dia é fruto de
uma série de aprendizados sociais que moldaram a evolução humana desde
que nosso primeiro antepassado resolveu descer da segurança de uma
árvore e se arriscar na savana africana. Muito do que somos foi moldado
por outros seres humanos ao longo da História.
A lista, claro, será considerada incompleta por muita gente. E é mesmo
difícil satisfazer a todos. Há algumas curiosidades. Quatro
personalidades elencadas são judeus - e o homem que tentou acabar com os
judeus no mundo, Adolf Hitler, também está na lista. E quatro entre as
dez pessoas mais votadas são associadas ao comunismo, uma ideologia que
entrou em colapso no final do século 20.
Certos resultados
foram surpreendentes. Empatado com Charles Darwin, Sigmund Freud foi o
segundo mais votado pelos especialistas, perdendo apenas para Karl Marx.
Brasileiros (não há nenhum entre os vencedores) foram mencionados por
estrangeiros, como o historiador britânico Kenneth Maxwell, que indicou
José Bonifácio de Andrada e Silva, "a figura crítica na conquista da
independência do Brasil". O jornalista e escritor Laurentino Gomes citou
o português dom João VI, "um herói às avessas, que transformou o
pedacinho do mundo que hoje conhecemos como Brasil". Jesus Cristo foi o
favorito dos leitores, mas teve poucos votos entre os especialistas. As
escolhas do leitor serviram de critério de desempate, confirmando Jesus e
Albert Einstein entre os finalistas.
A lista, não custa
ressaltar, não trata dos "dez heróis" ou das "dez pessoas que ajudaram a
fazer deste um mundo melhor". Genocidas como Josef Stalin, Mao Tsé-tung
e Adolf Hitler tiveram contribuições ao planeta, mesmo sem ter
intenção. Nosso mundo também é fruto do que se tenta evitar - e do
esforço para que tragédias não se repitam.
CURRÍCULO
Nome: Jeshua ben Joseph
Nascimento: cerca de 7 a 4 a.C., Nazaré, Galileia
Morte: c. 30-36, Jerusalém
Ocupação: Aprendiz de carpinteiro, profeta, mártir, fundador do cristianismo
Jesus Cristo
Fundador da maior religião do mundo e de boa parte da história ocidental
De certa forma, nenhum outro personagem desta lista existiria sem ele. É
quase impossível imaginar a história do mundo ocidental sem Jesus
Cristo, com séculos de pensamento dedicados a conciliar a filosofia e
hábitos pagãos com o monoteísmo importado da Judeia. "Seus seguidores
continuam a ser os mais numerosos no mundo, o calendário é baseado nele e
constitui o elo entre o judaísmo e o helenismo", afirma o historiador e
arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Ainda que a civilização
cristã raramente tenha conseguido viver pelas palavras de Jesus de amar
ao próximo, não julgar para não ser julgado e dar a outra face, a Igreja
fundada em seu nome é absolutamente central na História do Ocidente.
Tanto que o calendário se divide em antes e depois de Cristo.
Países como Alemanha, França e Espanha só existem porque reis bárbaros
se converteram ao cristianismo e ganharam legitimidade após a queda do
Império Romano. As Cruzadas introduziram o gosto por especiarias aos
europeus, e isso é tanto a origem das Grandes Navegações, na Península
Ibérica, quanto do capitalismo que bancou a Renascença, na Itália. Foi a
Igreja que fundou as primeiras universidades, e dela saíram vários
pensadores que retomaram a filosofia clássica, como Santo Agostinho,
Roger Bacon e São Tomás de Aquino. A Reforma Protestante comandada pelo
alemão Martinho Lutero liberou o homem para acumular riqueza sem culpa,
uma das causas da Revolução Industrial. É um assunto controverso, mas
vários pensadores, como o filósofo alemão Friedrich Nietzsche,
relacionaram o cristianismo aos ideais igualitários modernos da
democracia e do socialismo.
O personagem mais importante para a
história do Ocidente é aquele sobre o qual menos se sabe. Nem uma linha
foi escrita sobre Jesus enquanto ele viveu. Autores não cristãos que
trataram dele, Tácito e Flávio Josefo, só apareceram décadas após sua
morte - e suspeita-se que monges medievais piratearam trechos sobre
Jesus nos originais. Quase 2 mil anos depois, a maior fonte sobre sua
vida continuam a ser os Evangelhos, que não são livros de História, mas
de pregação religiosa.
A busca pelo Jesus histórico é limitada.
Pesquisadores costumam comparar os Evangelhos com fatos conhecidos de
seu tempo. Por exemplo, como não existe nenhum registro de um censo na
Judeia na época de seu nascimento, a maioria dos historiadores acredita
que ele nasceu mesmo em Nazaré, não em Belém (fato usado para
identificá-lo à estirpe do rei Davi), e isso foi no máximo em 4 a.C., no
fim do reino de Herodes, o Grande. Portanto, nosso calendário carrega
um erro de cálculo.
Mas alguns fatos bíblicos são amplamente
aceitos: Jesus existiu, foi batizado por João Batista e crucificado por
Pôncio Pilatos, após um incidente no Templo de Jerusalém. E a religião
que fundou já havia chegado à capital do Império Romano no reino de Nero
(54-68), décadas depois de sua morte. O que quer que Jesus tenha dito
ou feito em vida, o cristianismo não existiria apenas com ele. Paulo de
Tarso, que nunca o encontrou em pessoa (teve uma visão), foi quem abriu a
religião a todos.
A conversão do imperador Constantino, em 312, tornou o cristianismo a maior religião do mundo, com 2,2 bilhões de fiéis hoje.
O mundo sem ele
Sem Jesus Cristo e o cristianismo, não haveria uma Igreja unificada e
forte para preservar o pensamento e conhecimento da Antiguidade durante a
Idade Média, nem para avalizar autoridade a imperadores como Carlos
Magno (742-814), que começou a impor ordem à Europa. O mundo "ocidental"
seria mais voltado ao Oriente, no que restou do Império Romano, da
Grécia ao Norte da África. Sem cristãos não haveria o Islã. Maomé
derivou um conteúdo considerável de sua doutrina do cristianismo. Jesus
era um dos profetas maiores. Em uma Europa bárbara não haveria
Renascença, Grandes Navegações ou Revolução Industrial. Talvez outra
civilização fosse dominante, como os persas ou indianos. A tecnologia
estaria alguns séculos atrasada.
CURRÍCULO
Nome: Karl Heinrich Marx
Nascimento: Trier, Prússia, 5 de maio de 1818
Morte: 14 de março de 1883, Londres, Reino Unido
Ocupação: Filósofo, economista e jornalista
Karl Marx
O Filósofo rebelde que foi à luta pelo socialismo
Marx partiu de uma filosofia para filósofos - o idealismo de Hegel -
para uma filosofia de ação. "Os filósofos apenas tentaram interpretar o
mundo de diversas formas; o ponto é mudá-lo", escreveu em 1845. E ele
mudou mesmo: o século 20 foi marcado pela divisão mundial entre
marxistas e defensores do capitalismo de várias vertentes. Como sistema
político, a democracia ocidental venceu em 1991 com a queda da União
Soviética, um pesadelo totalitário em que ninguém poderia vislumbrar o
comunismo prometido por Marx, uma sociedade sem classes, Estado ou
opressão. Mas muitos pensadores contemporâneos, como os filósofos Slavoj
Zizek e Antonio Negri, e o falecido historiador Eric Hobsbawn, afirmam
que ainda é cedo para decretar a morte do marxismo como ideologia. Marx
afirmou no século 19 que crises cíclicas eram inerentes ao capitalismo -
e o crash de 2008, último de uma série, mostra que essa foi uma
previsão certeira. "Sua crença de que a justiça social deveria ser uma
razão fundamental de todas as comunidades modernas nem sempre foi
bem-sucedida, menos ainda em todas as ditaduras comunistas, mas sua
influência foi mundial e contínua", diz o historiador britânico Richard
Overy.
No que ele mesmo chamava de praxis, os conceitos de Marx
mudaram a geopolítica do planeta. Mas ele também tem uma enorme
contribuição acadêmica, o que garante a permanência de seu pensamento
como norte intelectual ainda hoje nas ciências humanas. Marx ajudou a
criar caminhos intelectuais, como a lógica dialética e o materialismo
histórico, que dominariam várias áreas do conhecimento no século 20. Ele
é um dos fundadores das ciências sociais, o saber que transformou a
mera especulação filosófica em estudo metódico, baseado em conceitos
científicos. Vale lembrar que sua teoria é um convite à ação. "Marx
criou as bases da mais profunda crítica do capitalismo e lançou ideias
para sua superação histórica", afirma o historiador Francisco Alambert,
da USP.
Em sua vida pessoal, Marx foi um grande ativista das
causas que defendia. Em 1864, fundou e dirigiu a Primeira Internacional,
organização mundial de comunistas, anarquistas e sindicalistas.
Escreveu e editou jornais revolucionários e tinha colunas em diários
convencionais, como o New York Daily Tribune, no qual defendeu o fim da
escravidão nos EUA. Tal como Albert Einstein, foi nas horas vagas que
escreveu sua obra-prima, O Capital, publicado em 1867. Também misturou a
vida familiar com a política - sua filha Laura casou-se com o
socialista francês Paul Lafargue, famoso por comandar jornadas em defesa
de 8 horas diárias de trabalho em Paris.
Perseguido pelas
autoridades europeias, vivendo quase sempre à beira da insolvência (e
costumeiramente socorrido financeiramente pelo amigo e parceiro
intelectual Frederick Engels), teve sete filhos com a baronesa Jenny von
West-phallen. Apenas três sobreviveram até a idade adulta. Quando
morreu, Karl Marx era ao mesmo tempo uma celebridade internacional e um
apátrida. De certa forma, ele foi o primeiro mártir do marxismo. Sua
tumba, em Londres, hoje é ponto turístico da cidade.
O mundo sem ele
O socialismo preconizado por Marx, adotado por sindicatos e partidos de
esquerda, foi responsável por diversas conquistas dos trabalhadores,
como a jornada de 8 horas, as férias anuais e as leis contra o trabalho
infantil. A crítica sistemática da sociedade capitalista iniciada por
Marx serviu de base intelectual para movimentos que não têm relação
direta com a causa do proletariado, como o feminismo e a luta por
direitos civis de negros e gays. Sem Marx, não haveria as tragédias do
comunismo soviético e chinês, mas também viveríamos num mundo mais
conservador, onde o nacionalismo, na ausência das grandes ideologias,
seria um fator importante a dividir os países. "Sem Marx, o materialismo
e a luta de classes demorariam a surgir", afirma Pedro Paulo Funari, da
Unicamp. "Não entenderíamos a força e a violência do capital", diz
Francisco Alambert, da USP. Possivelmente não existiriam instituições
como a Comunidade Europeia sem a Guerra Fria para unir os europeus
ocidentais.
CURRÍCULO
Nome: Sigmund Freud (Sigismund Schlomo Freud)
Nascimento: 6 de maio de 1856, Freiberg in Mähren, Império Austro-Húngaro (hoje P¿ríbor, República Checa)
Morte: 23 de setembro de 1939, Londres, Reino Unido
Ocupação: Psiquiatra e fundador da psicanálise
Sigmund Freud
Austríaco mudou a imagem que o ser humano tem de si mesmo
À primeira vista, o pai da psicanálise é um personagem destoante nesta
lista. Não foram feitas revoluções em seu nome e sua contribuição
científica é controversa. Entre seus muitos críticos, Karl Popper,
possivelmente o maior filósofo da ciência do século 20, simplesmente
excluiu a psicanálise do domínio científico. O complexo de Édipo foi
rejeitado por antropólogos, que não confirmaram algo parecido em outras
culturas pelo mundo. E, para Freud, o tal complexo era a razão de ser de
sua teoria. "No complexo de Édipo reúnem-se os começos da religião,
moralidade, sociedade e arte, em plena concordância com a verificação
psicanalítica de que esse complexo forma o núcleo de todas as neuroses",
escreveu ele em Totem e Tabu.
Mas entre todos os mencionados,
Freud é provavelmente o que tem a maior influência no cotidiano das
pessoas hoje em dia. Para o professor da Unicamp Pedro Paulo Funari, ele
"introduziu a vida interior ou psíquica no centro da maneira como as
pessoas entendem e se entendem no mundo". A ideia do que é ser humano
foi refundada por Freud. Antes, havia duas concepções principais: o
homem cartesiano, uma mente perfeitamente livre e racional, independente
do corpo e suas vicissitudes. Ou o Homo economicus, uma máquina de
calcular que sempre agia para maximizar resultados e ganhar dinheiro,
uma tradição que vai de Adam Smith até Karl Marx. Hoje, cientistas e
psicólogos entendem o ser humano como um animal dotado de razão, mas uma
razão imperfeita, altamente influenciada por seus desejos e
sentimentos, às vezes inconscientes, às vezes inconfessáveis,
atormentado pela contradição entre esses impulsos e a vida em sociedade.
Ideia surgida com a psicanálise que ciências mais duras, como a
neuropsiquiatria e a psicologia evolutiva, só têm reforçado. Alguns
conceitos freudianos, como o inconsciente e a razão deturpada pelos
desejos, são amplamente aceitos por neurocientistas. Existe, assim, uma
revolução freudiana, no "estudo da mente humana, demonstrando que
traumas, sonhos, desejos e fantasias têm impacto decisivo no
comportamento das pessoas", de acordo com o jornalista e escritor
Laurentino Gomes.
Formado em Medicina em 1881, Freud começou a
trabalhar como psiquiatra científico, estudando a anatomia do cérebro.
Em 1885, na França, teve sua primeira revelação: muitas condições
físicas nos pacientes eram causadas por transtornos da mente. De volta à
Áustria, tomou contato com Josef Breuer, que descreveu como uma
paciente havia melhorado apenas por meio de conversa, caso que
interessou vivamente a Freud. Pela mesma época, recomendou ao colega
psiquiatra Ernst von Fleischl-Marxow o "antidepressivo" da época, a
cocaína. Marxow morreu de overdose em 1891. Esses eventos o levaram a
abandonar as drogas e a hipnose para adotar a cura pela conversa, que
batizou de psicanálise em 1896. Em 1899, lançou o livro fundador da
teoria, A Interpretação dos Sonhos.
Freud refinaria e ampliaria
suas concepções até o fim da carreira, ganhando discípulos e tornando a
psicanálise uma das terapias mais populares da psicologia do século 20.
A nova ideia do ser humano teve imensas ramificações nas artes, cultura
e filosofia. Surrealismo, dadaísmo, pós-modernismo - tudo isso nasceu
das ideias de Freud.
O mundo sem ele
Paradoxalmente para esse conservador convicto, que considerava o orgasmo
pelo clitóris ou qualquer forma de sexo não reprodutivo como falhas no
desenvolvimento mental, o mundo seria bem mais "careta" sem ele. Suas
teorias influenciaram a arte e o pensamento de vanguarda. A explicação
naturalista para o sexo, incluindo a sexualidade na infância, abriu
caminho para a revolução sexual, iniciada justamente pelos artistas e
pensadores de vanguarda. A filosofia pós-moderna, a rejeição do mundo
racional e científico contemporâneo, começa pela dúvida freudiana de uma
razão pura. Enfim, sem o austríaco, não haveria os anos 60. O mundo não
teria subculturas, mas uma divisão baseada puramente em ideias, entre
respeitáveis senhores de paletó e gravata.
CURRÍCULO
Nome: Charles Robert Darwin
Nascimento: 12 de fevereiro de 1809, Shrewsbury, Inglaterra
Morte: 19 de abril de 1882, Londres, Inglaterra
Ocupação: Geólogo e biólogo
Charles Darwin
O cientista que mudou a história do homem com a seleção natural
Em 1859, um livro colocou o ser humano em seu devido lugar. Antes dele,
a humanidade tomava a si própria como o ápice da criação, num mundo em
que todas as outras formas de vida haviam sido colocadas na Terra por
Deus apenas para servi-la. A Origem das Espécies demoliu essa visão
milenar. "Sua influência no desenvolvimento de áreas críticas da ciência
foi profundo. Ao mesmo tempo, ajudou a construir uma nova visão
científica do mundo, substituindo a visão cristã prevalente", afirma o
historiador e autor britânico Richard Overy.
Darwin afirmou que
a espécie humana evoluiu, como todas as outras, por meio de um processo
que não tem direção definida, com todos os animais partilhando um
ancestral comum. É a sobrevivência do mais apto - não a do mais forte -
às circunstâncias que guia a evolução. A espécie humana não foi feita à
imagem e semelhança de Deus, mas surgiu de um macaco na savana africana.
Esse foi um impacto brutal na autoimagem da humanidade, que até hoje
muitos ainda relutam em aceitar. Ainda mais em uma sociedade
conservadora como a Grã-Bretanha do século 19.
Pelos diários de
Darwin, sabe-se que ele já havia chegado a essas conclusões 20 anos
antes. Mas temia publicá-las, porque podia prever as consequências na
cultura da Inglaterra vitoriana. Aos 50 anos, tinha muito a perder, numa
admirável carreira que havia rendido a medalha da Royal Society, a
academia britânica de ciências, em 1853. " Não sei o que pensar:
realmente detesto a ideia de escrever por prioridade, mesmo assim
ficaria irritado se qualquer um publicasse as minhas teorias antes de
mim", escreveu alguns anos antes da publicação. Seu trabalho começou com
o retorno da viagem do navio Beagle, em 1836, trazendo fósseis e
espécimes do mundo todo, inclusive do Brasil.
A ideia de
evolução em si não era nova. Em 1809, ano de nascimento de Darwin, o
naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck propôs a evolução por meio de
características adquiridas por esforço - um princípio errado, que
marginalizou a ideia, já então tida por heresia. Darwin só decidiu tirar
da gaveta A Origem das Espécies porque um pupilo seu, Alfred Russel
Wallace, apresentou a ele uma teoria quase idêntica, em 1858. Wallace
poderia também ter sido o pai da seleção natural, mas quem apresentou a
tese fez toda a diferença. As credenciais de Darwin estavam acima de
qualquer suspeita. Wallace era um jovem desconhecido, com fama de
radical.
As décadas de preparação fizeram de A Origem das
Espécies um trabalho impecável, prova e explicação definitiva para a
evolução. Para surpresa de Darwin, o livro tornou-se um best-seller,
transformando o cientista recluso em celebridade internacional,
discutido, caluniado e caricaturado nos jornais. Sem gosto pela vida
pública, coube a outros cientistas, como seu amigo Thomas Huxley,
defendê-lo. Quando morreu, em 1882, era um tesouro do Império Britânico.
O naturalista agnóstico ganhou a honra de ser enterrado na Abadia de
Westminster, junto a outros grandes cientistas da nação, como Isaac
Newton. O darwinismo tornou-se a doutrina capaz de explicar e dar novos
rumos à biologia, fazendo a ciência - sem trocadilho - evoluir ao longo
do século 20. Suas teses são contestadas apenas por um grupo: o dos
cristãos fundamentalistas, os chamados criacionistas.
O mundo sem ele
Inúmeros avanços não teriam acontecido. Viveríamos num mundo de
máquinas impressionantes, mas de ciência biológica primitiva, onde a
maioria das crianças morreria na infância como no século 19. Mesmo que a
teoria dos germes fosse desenvolvida, é preciso da seleção natural para
entender a resistência aos antibióticos. Ecologia seria apenas
romantismo, preservação de paisagens. Por mais que igrejas tradicionais,
como a Católica, tenham buscado conciliar o darwinismo às suas crenças,
ao explicar a origem da humanidade sem a necessidade de Deus, a seleção
natural fez com que elas perdessem muito de sua influência. Darwin
também ajudou a impulsionar a genética, e a descoberta do DNA, no século
20, tem a ver com seus escritos. "Sem Darwin, o mundo demoraria a
explicar o mundo sem recorrer às forças sobrenaturais", afirma Pedro
Paulo Funari, da Unicamp.
CURRÍCULO
Nome: Adolf Hitler
Nascimento: 20 de abril de 1889, Braunau am Inn, Império Austro-Húngaro
Morte: 30 de abril de 1945, Berlim, Alemanha
Ocupação: Pintor, cabo do exército, político, ditador
Adolf Hitler
A personalização do mal levou a barbárie à civilização
É difícil falar do nazismo sem recorrer a expressões moralistas como "O
Mal". O professor Francisco Alambert, da USP, o define como "a mais
perfeita tradução do horror moderno". Com Mao e Stalin, Hitler é um dos
personagens cujo perfil torna obrigatório incluir uma contagem de
cadáveres - 11 milhões, entre judeus, poloneses, comunistas, ciganos,
homossexuais, testemunhas de Jeová e opositores, em execuções, massacres
e campos de extermínio. Isso sem contar os 50 milhões da Segunda
Guerra, que podem ser atribuídos a ele.
A diferença é que China
e União Soviética nunca tiveram algo parecido aos campos de extermínio
nazistas. Hitler foi inédito em seu ódio. Em meio a uma guerra que
estava perdendo, desviou preciosos recursos para uma imensa operação
industrial com o objetivo de eliminar pessoas de forma rápida e
eficiente. O nazismo ainda recriou a escravidão em pleno século 20, com
20% da mão de obra alemã provindo de trabalho forçado.
Em 1919,
recebeu do exército a missão de investigar o Partido dos Trabalhadores
Alemães, fundado por Anton Drexler. Ao participar de uma reunião,
surpreendeu os membros do partido com seu lendário talento para
oratória. Saiu do exército e juntou-se ao grupo, que mudou o nome para
Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (ou Nazi) em 1921.
Dois anos depois, Hitler e outros líderes acabaram presos após o
fracasso de uma tentativa de golpe de Estado em Munique. Na cadeia
escreveu Mein Kampf, autobiografia e programa ideológico que impulsionou
sua meteórica carreira política. Em 30 de janeiro de 1933, tornou-se
chanceler (primeiro-ministro) da Alemanha.
O führer rearmou o
país, recuperou a economia e fez inúmeras obras públicas. Foi eleito
"homem do ano" de 1938 pela revista norte-americana Time. Em setembro do
ano seguinte, ordenou a invasão da Polônia, sabendo que isso
significava ter França e o Reino Unido como inimigos. A máquina de
guerra nazista começou a patinar entre 1942 e 1943, quando foi derrotada
no Egito e Stalingrado, na URSS. A partir daí, a guerra se tornou
defensiva e cada vez mais desesperada - como o avanço das tropas
soviéticas dentro da Alemanha, até a derrota em 1945. Hitler uniu
comunistas, liberais e conservadores contra seu projeto nacionalista e
seu fracasso tornou patéticas práticas que eram aceitas nos anos 30,
como a eugenia e o racismo.
"Hitler não apenas ajudou a criar o
horror que foram a Segunda Guerra e o Holocausto, nos quais dezenas de
milhões morreram. Ele alterou a paisagem política global para sempre",
afirma o jornalista e autor norte-americano Jon Lee Anderson. A divisão
do mundo na Guerra Fria e a chamada Cortina de Ferro surgiram dos
acordos feitos entre os soviéticos e os aliados ocidentais Mas o horror
também contribuiu para a criação da União Europeia e para o maior
período de paz da história da Europa, que a propósito dura até hoje. Por
fim, como suprema ironia histórica, o homem que pretendia acabar com
todos os judeus contribuiu para que o Estado de Israel nascesse mais
depressa como solução para a crise humanitária pós-Segunda Guerra. Foi
sua maior humilhação.
O mundo sem ele
É
provável que a maior contribuição de Adolf Hitler para a História tenha
sido desacreditar suas próprias ideias. O nacionalismo se tornou
anátema na Europa e hoje qualquer discurso nacionalista embute um gene
nazista. Racismo e eugenia são práticas totalmente desacreditadas hoje. A
cooperação entre os países aumentou de modo a evitar novas guerras, e
seu maior resultado foi a criação da Organização das Nações Unidas. Por
causa do esforço de guerra, os alemães contribuíram para a conquista do
espaço. Os foguetes V2, desenvolvidos pelo alemão Werner von Braun,
foram o primeiro passo para os programas espaciais dos EUA e da União
Soviética. Há até uma estranha contribuição para a saúde. Os médicos
nazistas foram os primeiros a pesquisar a relação entre o cigarro e o
câncer. Para o professor da USP Francisco Alambert, se Hitler não
tivesse existido, "o século 20 seria menos bárbaro e o fascismo
cotidiano perderia grande parte de seu espetáculo".
CURRÍCULO
Nome: Albert Einstein
Nascimento: 14 de março de 1879, Ulm, Alemanha
Morte: 18 de abril de 1955, Princeton, Estados Unidos
Ocupação: Físico e pacifista
Albert Einstein
O pacifista que mudou a física e deu origem às armas nucleares
A física se divide em antes e depois de 1905. Entre março e setembro
daquele ano, quatro artigos foram publicados no periódico científico
Annalen der Physik, de Berlim. Um demonstrava a dualidade entre
partícula e onda, provando que a física quântica descrevia fenômenos
reais, não efeitos de laboratório - o que nem Max Planck, considerado o
pai dessa ciência, acreditava. Outro mostrava que átomos também eram
reais, e não abstrações úteis para explicar fenômenos misteriosos. O
terceiro estabeleceu que a velocidade da luz é constante,
independentemente da velocidade de quem a emite - o que acontece é que o
tempo fica mais lento para quem se aproxima dessa velocidade. Essa é a
teoria da relatividade especial, que batia de frente com a física
newtoniana - até então, e por mais de 200 anos, chamada simplesmente de
física.
O último artigo estabelecia a equivalência entre
matéria e energia, uma das equações mais famosas da história da ciência,
E=mc2, o que afetaria o mundo de forma bem direta, pois é simplesmente a
origem da bomba atômica.
Einstein tinha apenas 26 anos e nunca
havia dado aulas. Seu trabalho era avaliar patentes num escritório em
Berna, na Suíça. Os quatro artigos do annus mirabilis foram produzidos
fora do horário de expediente, longe de laboratórios, de colegas com
quem discutir e até mesmo de uma biblioteca adequada. Para muitos
historiadores da ciência, foi o mais brilhante trabalho amador da
História. Rapidamente Einstein foi reconhecido por seus pares e ganhou o
primeiro cargo de professor na Universidade de Berna, em 1908,
mudando-se para sua Alemanha natal em 1914. Mas houve enorme resistência
dos defensores da física clássica. Tanto que, em 1921, quando recebeu o
Prêmio Nobel, foi por sua explicação do efeito fotoelétrico - a parte
que prova a física quântica - e não pela relatividade, que ainda
irritava muitos cientistas com essa história de ter que deixar para trás
séculos de física newtoniana.
Einstein tornou-se rapidamente
uma celebridade internacional, a encarnação viva do supergênio. A sua
foto com o cabelo desgrenhado e a língua de fora tornou-se um ícone pop
que rivaliza com a imagem de guerrilheiro de Che Guevara. Suas opiniões
sobre qualquer tema apareciam nos jornais, como sua defesa da
democracia, socialismo e pacifismo. Foi nessa condição que veio ao
Brasil, em 1925, observar um cometa que justificaria sua teoria de
gravitação.
Ele se tornou "um pacifista fundamental, hostil ao
militarismo de sua era e um ícone do sentimento antiguerra que dura
ainda hoje", como afirma o historiador britânico Richard Overy. Mas esse
pacifismo tomou partido em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler na
Alemanha. Adotando os EUA como nova nação, Einstein se tornou partidário
da guerra contra os nazistas. Em 1939, enviou uma carta ao presidente
Franklin Roosevelt, alertando sobre a possibilidade do desenvolvimento
de uma bomba atômica alemã. O gesto deu origem ao Projeto Manhattan e
daí às bombas de Hiroshima e Nagasaki. Em 1954, ele diria ao amigo Linus
Pauling que a carta a Roosevelt foi o maior erro de sua vida.
O mundo sem ele
Em 1905 e depois, Einstein respondeu a desafios da física que não foram
levantados por ele próprio. Talvez outros físicos tivessem, anos ou
décadas depois, chegado às mesmas conclusões. Mas o fato de Einstein ser
judeu evitou uma possível tragédia. Os nazistas batizaram a física
quântica e a relatividade de "física judaica" - além de Einstein, o
dinamarquês Niels Bohr, outro pioneiro do universo quântico, também era
judeu. No lugar da física moderna, propuseram o ensino da "física
alemã", a mesma de Isaac Newton. Por isso, e pela fuga de cérebros
causada pela perseguição, o programa nuclear nazista foi um fracasso -
se alguém de olhos azuis fosse o autor de E=mc2, a história poderia ser
diferente, e pior. As bombas atômicas também impediram a Terceira Guerra
Mundial. Estados Unidos e União Soviética mantiveram uma paz tensa por
medo da aniquilação mútua.
CURRÍCULO
Nome: Vladimir Ilyich Uliánov
Nascimento: 22 de abril de 1870, Simbirsk, Rússia
Morte: 21 de janeiro de 1924, Gorki, Rússia
Ocupação: Advogado, jornalista, escritor e revolucionário profissional
Vladimir Lenin
O fundador do primeiro Estado socialista levou a teoria à prática
Se Karl Marx deu as bases teóricas para a revolução socialista, até
1917 faltava alguém mostrar como fazê-la na prática. Havia muitos
partidos que seguiam as ideias do filósofo alemão. Mas, em geral, eles
concordavam com o que Marx havia dito sobre a evolução das sociedades:
uma revolução proletária só poderia acontecer em um país com capitalismo
avançado e um proletariado com consciência de classe, que faria a
revolução sozinho. O advogado Vladimir Ilyich Uliánov deixou tudo isso
de lado. Diferentemente de Marx, que não deu atenção aos países
atrasados, Lenin era um grande crítico do imperialismo, que considerava a
fase final do capitalismo. Ele acreditava que a revolução poderia ser
feita, sim, em um país semifeudal como a Rússia, que recém havia abolido
a servidão e tinha um proletariado minúsculo. Ele também imaginava que
nenhuma revolução surgiria espontaneamente, mas que os trabalhadores
precisariam de um partido de vanguarda, um bloco homogêneo e inflexível
formado por revolucionários em tempo integral. Em 1897, Lenin foi preso e
exilado para a Sibéria, por onde passa o Rio Lena - de onde vem o
pseudônimo famoso. Em 1903, conseguiu formar seu grupo, a partir de um
racha no Partido Operário Social-Democrático Russo. Os que apoiaram
Lenin foram chamados de bolcheviques, a maioria. Os moderados, liderados
por seu ex-colega Julius Martov, de mencheviques, minoria.
A
primeira tentativa de revolução bolchevique foi em 1905, durante uma
onda de greves, protestos e motins que tomou a Rússia após a derrota
para o Japão na Guerra Russo-Japonesa. A revolução fracassou e Lenin foi
para o exílio. Durante a Primeira Guerra, comprou briga com os
socialistas do mundo inteiro, que apoiaram seus países no conflito.
Lenin chamou a todos de traidores do proletariado, por defenderem uma
guerra entre imperialistas. Mas foi o conflito que deu a ele sua grande
oportunidade. Com as privações causadas pela guerra, em fevereiro de
1917 estourou outra revolução na Rússia. O czar abdicou e um governo
provisório foi formado por uma coalizão entre liberais e socialistas.
Conselhos (soviets, em russo) de trabalhadores e camponeses foram
criados para defender a revolução. Disfarçado com uma peruca e de barba
cortada, Lenin voltou à Rússia em agosto e conseguiu convencer os
sovietes a se voltarem contra o governo provisório. Em 7 de novembro de
1917, a guarda vermelha de Lenin depôs o governo e deu início a uma
guerra civil que duraria até 1923 e na qual padeceram, entre balas, fome
e repressão brutal, 9 milhões de russos. Dessa forma traumática, nasceu
a primeira nação marxista, oficializada em 1922. Em maio do mesmo ano,
Lenin teve um derrame. Afastado do poder, passou seus últimos dias
conspirando com Trotsky, sem sucesso, para evitar que Stalin fosse seu
sucessor.
O mundo sem ele
É possível
que os marxistas estivessem até hoje esperando as condições materiais
estarem maduras o suficiente para a revolução socialista se Vladimir
Lenin não tivesse tomado o trem rumo à estação Finlândia, em São
Petersburgo. É difícil imaginar a história do século 20 sem a União
Soviética ou qualquer outro país comunista. E a maneira de organização
dos comunistas é obra de Lenin e de seu modelo de partido
revolucionário, baseado no que chamava de "centralismo democrático",
capaz de "liderar as massas contra a burguesia". O medo do comunismo fez
com que quase todos os países democráticos, inclusive os Estados
Unidos, aprovassem programas sociais e legislação trabalhista. Sem a
insegurança gerada pelo risco do comunismo, a questão social ainda
poderia continuar sendo tratada como caso de polícia. A causa
anti-imperialista também teve em Lenin um de seus mais potentes
defensores, e é possível que África e Ásia ainda tivessem colônias
europeias sem sua inspiração nas lutas anticoloniais do século 20 - o
socialismo foi o norte dos grupos envolvidos em processos de
independência. A luta contra o comunismo tem seu lado sombrio em fatos
como as ditaduras no Brasil e em outros países da América Latina, que
colocaram os militares no poder por temor de governos esquerdistas. Para
o professor Pedro Paulo Funari, "sem Lenin, talvez a Rússia ainda fosse
uma monarquia atrasada até hoje".
CURRÍCULO
Nome: Iosif Djugashvili
Nascimento: 18 de dezembro de 1878, Gori, Geórgia
Morte: 5 de março de 1953, Moscou, Rússia
Ocupação: Revolucionário profissional, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética
Josef Satalin
O tirano que industrializou um país feudal e derrotou Adolf Hitler
A carta-testamento de Lenin, escrita no início de 1923, tem a seguinte
passagem: "O camarada Stalin, tendo se tornado secretário-geral, tem
autoridade ilimitada concentrada em suas mãos, e não tenho certeza de
que sempre irá utilizá-la com suficiente prudência". Se a carta não
tivesse aparecido só depois da morte de Lenin e prontamente suprimida,
as vidas de 4 milhões a 60 milhões de pessoas, dependendo de qual
historiador consultado, talvez tivessem sido poupadas. É possível gastar
milhares de páginas tratando das atrocidades de Stalin. Mas, em uma
frase, ele mudou a história.
Quando se juntou aos bolcheviques
em 1903, Iosif Djugashvili era conhecido por ser um revolucionário de
ação. O assalto a banco que comandou em Tiflis, na Geórgia, em 1907, por
exemplo, causou 40 mortes - Stalin ("feito de ferro") era o codinome
que usava em ações assim. A partir de 1917, começou a ganhar posições
dentro do partido comunista, até tornar-se secretário-geral do PC da
União Soviética, em 1922. Enquanto Lenin acreditava que a URSS só
sobreviveria se conseguisse exportar a revolução, Stalin lançou a
doutrina do "socialismo em um só país". Dizia que era possível a União
Soviética sobreviver sozinha. E acabaria por provar isso - mas, antes,
precisou transformar a Rússia de um país agrícola retrógrado em uma
potência industrial.
Stalin era sincero em sua crença no
socialismo. Para acalmar os ânimos da população, Lenin havia admitido um
pouco de capitalismo na União Soviética ao formular a Nova Política
Econômica, de 1921, que permitia pequenos negócios e propriedades
rurais. Após eliminar qualquer oposição a seu poder absoluto, em 1928
Stalin lançou seu primeiro Plano Quinquenal, estatizou a agricultura e
deu início a uma gigantesca campanha de industrialização, tentando
superar o que ele chamava de "50 a 100 anos de atraso" da Rússia. A
coletivização da agricultura causou revoltas, repressão brutal aos
pequenos proprietários e uma fome que matou milhões de soviéticos,
especialmente na Ucrânia. Mas sua campanha industrial fez a economia
russa crescer incríveis 2 425% entre 1928 e 1937, uma década que no
resto do mundo foi abalada pelo crash da Bolsa de Valores de Nova York.
Em 1939, União Soviética e Alemanha assinaram o Pacto
Molotov-Ribbentrop, um acordo secreto de não agressão. Em junho de 1941,
Hitler rasgou o tratado e invadiu a União Soviética, pegando Stalin de
surpresa. No fim do ano, as forças nazistas estavam a apenas 32 km de
Moscou. Stalin permaneceu no Kremlin e liderou pessoalmente a
resistência. Foi salvo por um gigantesco deslocamento de tropas que
socorreram a cidade vindas dos confins da Sibéria. A resistência em
Moscou e em outras cidades soviéticas, como Stalingrado, inverteria a
situação nos dois anos seguintes. Em 1945, as tropas soviéticas
marchavam sobre Berlim. O avanço militar das forças de Stalin foi
seguido pela divisão política da Europa - todo o leste, com exceção da
Grécia, ficou sob a órbita soviética até o fim da URSS, em 1991. Na
conta de Stalin pode-se pendurar o atraso colossal da biologia e das
artes durante seu longo governo, destruídas por seus zelosos
comissários. Mas ao virar o rumo da guerra quase sozinho ele salvou o
mundo do nazismo.
O mundo sem ele
A
União Soviética seria com certeza um lugar mais agradável de viver. E
isso duraria até ser conquistada pela Alemanha nazista, que considerava
os eslavos um povo inferior, naturalmente vocacionados à escravidão. O
algoz também poderia ter sido o Japão imperial, que tinha planos para
atacar o país, mas desistiu quando o ensaio da invasão, uma batalha na
Mongólia, em 1939, falhou miseravelmente diante dos tanques e aviões
russos, fruto da indústria pesada que acabara de ser criada por Stalin.
Ou ainda pelos Estados Unidos depois da Segunda Guerra, se o ditador não
tivesse conseguido a bomba atômica com a ajuda de seus espiões. A força
da União Soviética na Segunda Guerra não pode ser subestimada. Sem
Stalin, o nazismo teria dominado tudo, da Sibéria até a França, e daí,
quem sabe, o resto do mundo. Como afirma Pedro Paulo Funari, "a URSS não
teria sobrevivido por tantas décadas nem teria havido Guerra Fria".
CURRÍCULO
Nome: Mao Tsé-tung
Nascimento: 26 de dezembro de 1893, Shaoshan, China
Morte: 9 de setembro de 1976, Pequim, China
Ocupação: Militar, revolucionário, escritor, presidente do Partido Comunista da China
Mao Tsé-Tung
Um pequeno homem comanda o despertar do gigante chinês
A China moderna, único país candidato a ameaçar a hegemonia econômica
norte-americana, nasceu das ações de Mao Tsé-tung. Ele tirou o país do
"século de humilhação", que vinha desde a derrota para o Reino Unido na
Primeira Guerra do Ópio, em 1842. Durante esse período, a China - que
por boa parte da história foi a sociedade mais organizada e
tecnologicamente avançada do planeta - acabou dominada por potências
estrangeiras e ficou sem Estado, fragmentada entre senhores da guerra.
Ao se divorciar da União Soviética, nos anos 60, Mao partiu o comunismo
em dois. Mas isso deu um novo fôlego a muitos comunistas pelo mundo,
pois a União Soviética era associada aos crimes de Stalin e a uma
burocracia envelhecida, corrupta e sem fervor revolucionário. O
engajamento da juventude contra as gerações anteriores foi inspiração
até para as passeatas de Maio de 1968 na França. A guerrilha de
esquerda, a estratégia maoísta na Guerra Civil Chinesa, fez história na
América Latina. Ao aceitar a visita do presidente norte-americano
Richard Nixon, em 1972, o ápice da "diplomacia do ping-pong", Mao
finalmente abriu o país ao exterior e deu o primeiro passo para
transformá-lo no que é hoje.
Mao, "para o bem ou para o mal,
unificou a nação ancestral da China, pavimentando o caminho para a
eventual emergência do país de séculos de isolamento", como afirma o
jornalista e escritor norte-americano Jon Lee Anderson. O "para o mal"
não pode ser subestimado. Entre 30 milhões e 70 milhões de mortes são
atribuídas à repressão e às experiências sociais de Mao, o que, em
números absolutos, configura a pior matança da história.
Filho
de fazendeiro, Mao foi um dos membros fundadores do Partido Comunista
Chinês, em 1921. O partido logo se aliou aos nacionalistas, o
Kuomintang, em campanha para reunificar o país. Em 1927, os
nacionalistas traíram a aliança e massacraram 400 comunistas em Xangai,
iniciando uma guerra civil que terminou com a fuga do Kuomintang para a
ilha de Taiwan, em 1949, e a ascensão dos comunistas ao poder, onde,
diga-se, se mantêm até hoje.Em 1958, Mao deu início ao "Grande Salto
para a Frente", uma tentativa de desenvolver a China sem auxílio
soviético. A fome, causada pela coletivização e o desvio de mão de obra
para a indústria, estima-se, matou entre 20 milhões e 40 milhões de
pessoas no país.
Com sua posição enfraquecida no Partido
Comunista, em 1966, Mao decidiu voltar a população contra os dirigentes.
A sua chamada Revolução Cultural instigou os jovens contra a burocracia
do partido e tudo o mais que parecesse velho, tradicional ou ocidental.
Com estudantes secundaristas atacando templos, livros e pessoas,
principalmente professores e intelectuais, a China mergulhou no caos. A
morte do Grande Timoneiro, em 1976, levou a um período de luta interna,
que terminou em 1978, com a vitória do reformista Deng Xiaoping, que
abriu o país ao capitalismo. Deng, para quem "enriquecer é glorioso",
disse que Mao estava "70% certo, 30% errado". A China hoje é um híbrido
de comando político comunista e economia capitalista.
O mundo sem ele
Se a China fosse liberada pelos nacionalistas, talvez tivesse um
destino parecido ao de Taiwan, um dos Tigres Asiáticos - países da
região que se desenvolveram rapidamente no final do século passado. Mas
dadas suas proporções e desafios colossais - antes de Mao Tsé-tung, o
país era uma caricatura de nação que mal conseguia alimentar sua
população - não há garantias. Outra questão é se a China fundada no
nacionalismo militarista de Chiang Kai-shek, cheia de ressentimentos
contra a União Soviética, o Japão e o Ocidente, não seria uma ameaça à
ordem mundial. A Coreia do Norte certamente não existiria, já a
intervenção chinesa na Guerra da Coreia garantiu a continuidade do
regime comunista. "Sem Mao não haveria a China que o capitalismo
resolveu adorar", diz Francisco Alambert, da USP.
CURRÍCULO
Nome: Abraham Lincoln
Nascimento: 12 de fevereiro de 1809, Hardkin County, Estados Unidos
Morte: 15 de abril de 1865, Washington, Estados Unidos
Ocupação: Partidor de tábuas, advogado, congressista e presidente dos EUA
Abraham Lincoln
O presidente que libertou os escravos e salvou os EUA
Não é segredo que políticos fazem promessas que não pretendem cumprir.
Ao menos uma vez na História, o mérito de um grande político esteve
justamente em ignorar suas promessas. Em 1859, Abraham Lincoln falou a
uma plateia em Cincinnati, Ohio: "Não tenho qualquer propósito de
interferir diretamente ou indiretamente com a instituição da escravidão
nos estados em que ela existe". Repetiu o mesmo discurso em outras
ocasiões. Em sua carreira, havia feito de tudo para tornar mais difícil a
escravidão, instituição que frequentemente comparava a um "câncer".
Também dizia que a frase na Declaração de Independência dos Estados
Unidos, "todos os homens são criados iguais", se aplicava aos negros,
ideia chocante para muitos na época. Essa postura ambígua fez com que
seu adversário na eleição para o Senado de 1858, Stephen Douglas, o
chamasse de "duas caras". A réplica rendeu uma das boutades mais famosas
de todos os tempos: "Se tivesse mesmo duas caras, por que o senhor acha
que eu estaria usando esta?"
Contemporâneos notaram o quanto
Lincoln era feio e malvestido, como sua voz era esganiçada. Mas o
esquisitão era de fato a encarnação do sonho americano. Nascido numa
família de agricultores analfabetos, tornou-se advogado estudando por
conta própria sem ter concluído o ensino fundamental. Foi eleito
deputado em 1846. Os debates durante a campanha ao Senado tornaram
Lincoln conhecido no país inteiro. Em 6 de novembro de 1860, elegeu-se
presidente, sem receber um único voto de delegados do sul do país. A
Carolina do Sul declarou secessão em 24 de dezembro, antes mesmo de ele
assumir a cadeira, em março do ano seguinte - quando mais seis outros
estados escravistas diziam ser parte de outro país, os Estados
Confederados da América.
Em 12 de abril, um ataque confederado a
um forte na Carolina do Sul deu início à Guerra Civil Americana,
primeiro conflito industrial da História, que causaria 750 mil mortes de
combatentes - quase o dobro do que o país perderia na Segunda Guerra.
Lincoln aproveitou as condições extremas para quebrar sua promessa e
levar adiante a abolição, primeiro nos estados reconquistados, em 1863. E
no resto do país em 1865. Sua terra natal, o Kentucky, era um dos
estados que lutaram pela União e que ainda tinha escravos. A vitória das
tropas da União tiveram reflexo até mesmo na História do Brasil. Um
grupo de confederados buscou asilo no país, com as bênçãos do imperador
dom Pedro II. Instalaram-se em São Paulo, onde tempos depois fundaram a
cidade de Americana.
Um dos planos de Lincoln era instituir um
amplo programa para integrar a população negra. Não viveu para isso. Em
14 de abril de 1865, cinco dias após a rendição dos confederados, o
fanático pró-escravidão John Wilkes Booth disparou contra ele no Teatro
Ford, em Washington. Lincoln morreu no dia seguinte, como o maior
presidente da História dos Estados Unidos. Segundo Francisco Alambert,
da USP, "o exemplo perfeito do `bom homem norte-americano¿; e do `bom
homem norte-americano¿ saiu muito do melhor e muito do pior do mundo
moderno". Exemplo que abriu caminho para a luta dos negros, de Martin
Luther King a Nelson Mandela.
O mundo sem ele
O fato de os Estados Unidos se dizerem a terra da liberdade enquanto
tinham escravos era uma hipocrisia que não passava despercebida por
outros países. O fim da escravidão e a guerra civil marcaram a
refundação do país, que deu início a uma segunda luta, a dos direitos
dos negros, com as últimas leis racistas nos Estados do sul abolidas em
1965, após uma longa campanha pelos direitos civis. A luta dos negros
americanos inspirou e deu ideias a movimentos similares no mundo todo,
inclusive no Brasil. Sem Lincoln, é possível que a escravidão
continuasse até o século 20 tanto lá quanto aqui - e a situação dos
negros certamente seria pior. Os Estados Unidos provavelmente seriam um
país mais atrasado, agrícola e isolado, não a potência industrial que
interveio no mundo em momentos críticos, como na Segunda Guerra. Isso se
continuasse unido depois da Guerra Civil. "Sem Lincoln, talvez não
houvesse um país unificado", diz Pedro Paulo Funari.