O
Maio de 1968 foi a maior greve geral da história. Este poderoso
movimento aconteceu no ponto culminante do auge econômico capitalista do
pós-guerra. Naquele momento, como agora, a burguesia e seus apologistas
se vangloriavam, já que, para eles, as revoluções e a luta de classes
eram coisas do passado. Então, quando chegam os acontecimentos franceses
de maio de 1968, parecem, para eles, relâmpagos em um límpido céu azul.
Também a esquerda foi pega de surpresa, já que a maior parte dela havia
descartado a classe trabalhadora européia como força revolucionária.
Em
maio de 1968, The Economist publicou um suplemento especial sobre a
França para comemorar os dez anos do governo gaullista. Neste
suplemento, Norman Macrae elogiava os êxitos do capitalismo francês,
destacava que os franceses tinham níveis de vida mais altos que os
britânicos, comiam mais carne, possuíam mais automóveis e outras coisas
mais. Citava a “grande vantagem nacional” da França sobre seu vizinho do
outro lado do canal: seus sindicatos eram “pateticamente fracos”. Mal
havia secado a tinta do artigo de Macrae e a classe trabalhadora
francesa assombrou o mundo com uma insurreição social sem precedentes
nos tempos modernos.
Os
acontecimentos de maio não foram previstos pelos estrategistas do
capital, nem na França nem em nenhum outro lugar. Não foram previstos
pelos dirigentes estalinistas nem pelos reformistas. As damas e
cavalheiros intelectuais, que se consideravam marxistas (a maioria deles
passou décadas falando de “luta armada”, de insurreição, etc.), não só
deixaram de prever o movimento dos trabalhadores franceses, eles
simplesmente negavam qualquer possibilidade de movimento dos
trabalhadores.
Tomemos
um dos “teóricos” marxistas acadêmicos, André Gorz. Este indivíduo
escreveu em um artigo o seguinte: “no futuro previsível não haverá
nenhuma crise do capitalismo europeu radical o suficiente para levar as
massas de trabalhadores a greves gerais revolucionárias ou insurreições
armadas em apoio a seus interesses vitais” (A. Gorz, Reform and
Revolution, Publicado em The Socialist Register 1968, ênfase minha).
Estas linhas foram publicadas em meio à maior greve geral revolucionária
da história.
Gorz
não era o único que descartava a luta revolucionária da classe
trabalhadora. O “grande marxista” chamado Ernest Mandel, apenas um mês
antes destes grandes acontecimentos, falou em uma reunião em Londres.
Durante sua intervenção, falou sobre tudo o que há abaixo do sol, mas
não dedicou uma só palavra à situação da classe trabalhadora francesa.
Quando na sala uma ou duas pessoas lhe perguntaram sobre esta
contradição, sua resposta foi: “os trabalhadores estão aburguesados e
‘americanizados’”; os trabalhadores franceses não protagonizariam nenhum
acontecimento deste tipo durante os próximos vinte anos.
O contexto
O
que nenhum destes cavalheiros compreendia era que o longo período de
auge capitalista que começou em 1945 transformou a correlação de forças
de classe e fortaleceu enormemente a classe trabalhadora européia.
Depois da experiência da Comuna de Paris a burguesia francesa passou a
ter um medo mortal do crescimento do proletariado e tratou de evitá-lo
desenvolvendo uma economia rentista, parasitária muito baseada no
capital financeiro, nos bancos e nas colônias. Contudo, depois da
Segunda Guerra Mundial a indústria francesa se desenvolveu profundamente
e provocou um rápido fortalecimento do proletariado e um declive geral
do campesinato.
O
desenvolvimento da indústria tornou o proletariado muito mais forte do
que nos anos trinta e ainda mais forte do que na época da Comuna de
Paris, quando praticamente todos os trabalhadores se encontravam em
pequenas empresas. Inclusive, em 1931, quase dois terços de todas as
empresas industriais da França não empregavam trabalhadores assalariados
e o terço restante empregava menos de dez. Somente 0,5% das empresas
industriais empregavam mais de cem trabalhadores.
Na
crise revolucionária de 1936 a metade da população francesa obtinha seu
sustento da agricultura, hoje a população rural é inferior a 6% da
população. Em 1968 a classe assalariada havia crescido não só em número,
mas também em termos de seu potencial de luta. Em 1968 essa mudança
fundamental pôde ser vista no papel chave desempenhado pelas gigantescas
fábricas como a Renault de Flins, com uma planta de 10.500
trabalhadores, dos quais 10.000 participaram dos piquetes e com um
mínimo de 5.000 trabalhadores assistindo regularmente às assembléias de
greve.
Em
1936, quando a correlação de forças de classe era infinitamente menos
favorável, numa situação onde nem um décimo havia avançado, Trotski
disse que o PCF e o PSF poderiam ter tomado o poder:
“Se
o partido de León Blum realmente fosse socialista, poderia, baseando-se
na greve geral, ter derrotado a burguesia, em junho, quase sem guerra
civil, com mínimos transtornos e sacrifícios. Porém, o partido de Blum é
um partido burguês, o irmão mais novo do podre Radicalismo”. (Leon
Trotski. On France, p. 178, ênfase minha).
A
correlação de forças em 1968 era imensamente mais favorável. Era
possível a transformação pacífica se os dirigentes do PCF tivessem agido
como marxistas. É importante insistir neste ponto. Somente a traição
dos dirigentes reformistas, que se negaram a tomar o poder quando
existiam as circunstâncias mais favoráveis, impediu que os trabalhadores
franceses tomassem o poder.
O papel dos estudantes
Os
estudantes sempre são um barômetro sensível às tensões que estão se
acumulando nas profundezas da sociedade. A onda de manifestações e
ocupações estudantis que precederam os acontecimentos de maio foi como
um relâmpago que anuncia a tormenta. Nos meses anteriores a maio já
havia uma efervescência entre os estudantes que havia se expressado em
uma série de manifestações e ocupações.
Frente
à onda ascendente de protestos estudantis o reitor da prestigiosa
universidade Sorbone decidiu fechá-la, era a segunda vez em seus
setecentos anos de história. A primeira vez aconteceu em 1940 quando os
nazistas ocuparam Paris. A tentativa da polícia de liberar o pátio da
Sorbone em 03 de maio foi a centelha que acendeu o fogo.
A
violência irrompeu no Bairro Latino, com o resultado de mais de cem
feridos e 596 presos. No dia seguinte os cursos foram suspensos na
Sorbone. As principais organizações estudantis, a UNEF e a Snesup,
convocaram greves indefinidas. Em 06 de maio houve novos enfrentamentos
no Bairro Latino: 422 presos, 345 policiais e uns 600 estudantes ficaram
feridos. A repressão provocou uma indignação generalizada.
Os
estudantes enfurecidos arrancaram paralelepípedos para arremessar
contra os policiais e levantaram barricadas seguindo a boa e velha
tradição francesa. Os estudantes das universidades de toda a França
saíram em seu apoio.
Na
noite de 10 de maio houve uma ampla revolta no Bairro Latino. Os
manifestantes levantaram barricadas e a polícia os atacou com grande
violência. Os bandidos armados da CRS (polícia anti-distúrbios) tomaram
de assalto apartamentos privados e golpearam selvagemente gente simples e
corrente, até mesmo uma mulher grávida. Mas, se depararam com uma
resistência que não esperavam. Os parisienses de suas janelas
bombardearam a polícia com vasos de plantas e outros objetos pesados.
Dos 367 hospitalizados, 251 eram policiais. Outras 720 pessoas ficaram
feridas e 468 foram presas. Carros foram destruídos ou queimados. O
Ministro da Educação insultou os manifestantes: “Ni doctrine, ni foi, ni
loi” (Nem doutrina, nem fé, nem lei).
Durante
a primeira semana, os dirigentes do PCF haviam menosprezado os
estudantes e os dirigentes sindicais e tentaram ignorá-los. L’Humanité
publicou um artigo daquele que seria o futuro líder do PCF, George
Marchais, com o título: Os falsos revolucionários têm de ser
desmascarados. Mas, ante a indignação geral da população e a pressão da
base, a burocracia sindical teve que entrar em ação. No dia 11 de maio
os principais sindicatos, CGT, CFDT e FEN, convocaram uma greve geral
para 13 de maio. Umas 200.000 pessoas manifestaram-se gritando palavras
de ordem tais como: “De Gaulle assassino!”.
George
Pompidou, então primeiro ministro, regressou rapidamente a Paris e
anunciou a reabertura da Sorbone nesse mesmo dia. Pretendia com este
gesto abrir as portas para um compromisso visando evitar uma explosão
social. Mas, era demasiado pouco e demasiado tarde. As massas entenderam
isso como um sinal de debilidade e seguiram adiante.
A greve geral
A
efervescência entre os estudantes era apenas a manifestação mais
evidente do descontentamento da sociedade francesa. Apesar do auge
econômico, os empresários franceses haviam aplicado uma pressão violenta
sobre os trabalhadores. Abaixo da superfície de aparente calma existia
um enorme acúmulo de descontentamento, rancor e frustração. Já em
janeiro houve violentos conflitos durante uma manifestação de grevistas
em Caen.
A
greve geral de 13 de maio marcou um ponto de inflexão qualitativo.
Centenas de milhares de estudantes e trabalhadores se lançaram às ruas
de Paris. Uma idéia da situação é a descrição que se segue da poderosa
manifestação de um milhão de pessoas que tomaram as ruas de Paris no dia
13 de maio:
“Fileiras
passavam incessantemente. Havia seções inteiras de trabalhadores de
hospitais com seus jalecos brancos, alguns carregavam cartazes onde se
podia ler: ‘Où sont les disparus des hôpitaux?' (Onde estão os feridos
desaparecidos?). Cada fábrica, cada centro de trabalho importante
parecia estar representado. Havia numerosos grupos de ferroviários,
carteiros, gráficos, metroviários, aeroportuários, comerciários,
eletricistas, advogados, garis, bancários, trabalhadores da construção
civil, vidreiros, químicos, faxineiros, empregados municipais, pintores e
decoradores, trabalhadores do gás, balconistas, escriturários,
trabalhadores do cinema, motoristas de ônibus, professores,
trabalhadores das novas indústrias de plástico, todos eles em fila, o
sangue da sociedade capitalista moderna, uma massa interminável, uma
força que podia arrastar tudo que estivesse em seu caminho, se assim o
desejasse”. (Citado em Revolutionary Rehearsals, p.12).
Os
dirigentes dos sindicatos esperavam que esta manifestação fosse
suficiente para deter o movimento, não tinham intenção de continuar e
estender a greve geral. Para eles a manifestação era apenas uma maneira
de liberar vapor. Porém, uma vez iniciado o movimento imediatamente
ganhou vida própria. A convocatória de greve geral foi como uma grande
rocha lançada sobre um lago tranqüilo. As ondas se estenderam a cada
canto da França. Ainda que houvesse apenas aproximadamente três milhões
de trabalhadores organizados em sindicatos, participaram da greve cerca
de 10 milhões e começou uma série de ocupações de fábricas em toda
França.
No
dia 14 de maio, um dia depois da manifestação de massas em Paris, os
trabalhadores ocuparam a Sud-Aviation em Nantes e a fábrica da Renault
em Cléon, seguidos pelos trabalhadores da Renault em Flins, Le Mans e
Boulogne-Billancourt. Greves foram iniciadas em outras fábricas por toda
a França, como em RATP e SNCF. Os jornais não saíram. No dia 18 de
maio, os mineiros do carvão pararam de trabalhar e o transporte público
ficou paralisado em Paris e em outras cidades importantes. Os trens
foram os próximos, depois o transporte aéreo, os estaleiros, os
trabalhadores do gás e da eletricidade (que decidiram manter o
abastecimento doméstico), os correios e as barcas que atravessam o Canal
da Mancha.
Os
trabalhadores tomaram o controle dos recursos petroleiros em Nantes,
negaram a entrada a todos os caminhões tanques que não tivessem a
autorização do comitê de greve. Foi formado um piquete no único
fornecedor de gasolina que funcionava na cidade, assim garantiu-se que o
único combustível liberado era para os médicos. Foram estabelecidos
contatos com as organizações camponesas nas zonas periféricas,
organizou-se o abastecimento de comida, os preços foram fixados pelos
trabalhadores e camponeses. Para evitar a especulação, as lojas tinham
que deixar à vista um adesivo com as palavras: “Esta loja está
autorizada a abrir. Os preços estão sob supervisão permanente dos
sindicatos”. O adesivo ia assinado pela CGT, CFDT e FO. Um litro de
leite era vendido por 50 centavos, seu preço normal era de 80 centavos. O
quilo da batata baixou de 70 para 12 centavos. O quilo da cenoura
passou de 80 a 50 centavos e assim sucessivamente.
Os
estudantes, os professores, os profissionais, camponeses, cientistas,
jogadores de futebol, até mesmo as bailarinas do Follies Bergères foram à
luta. Em Paris os estudantes ocuparam a Sorbone. O teatro l’Odeon foi
ocupado por 2.500 estudantes e os estudantes do ensino médio ocuparam
suas escolas:
“A
febre de ocupação afetou a intelligentsia. Os médicos radicais ocuparam
as sedes da Associação Médica, os arquitetos radicais proclamaram a
dissolução de sua associação, os atores fecharam todos os teatros da
capital, os escritores encabeçados por Michel Butor ocuparam a Societe
de Gens de Lettres no Hotel de Massa. Inclusive os executivos das
empresas participaram ocupando durante um tempo o edifício do Conseil
National du Patronat Français, depois se deslocaram para a Confederation
Generale des Cadres”. (David Caute. Sixty Eight, the Year of the
Barricades, p.203).
Como
as escolas estavam fechadas, os professores e os estudantes organizaram
vigílias, brincadeiras, comidas gratuitas e atividades para os filhos
dos grevistas. Foram criados comitês de mulheres de grevistas que
tiveram um papel importante na organização do abastecimento de
alimentos. Não só os estudantes, como também os advogados profissionais
estavam infectados pelo vírus da revolução. Os astrônomos ocuparam um
observatório. Houve uma greve no centro de pesquisa nuclear de Saclay,
onde a maioria dos 10.000 empregados eram pesquisadores, técnicos,
engenheiros e cientistas. Até a igreja foi afetada. No Bairro Latino,
jovens católicos ocuparam a igreja e exigiam debates no lugar das
missas.
O poder nas ruas
Os
distúrbios continuavam em Paris, os trabalhadores e estudantes
desafiavam o gás lacrimogêneo e as baterias de policiais. Em uma só
noite houve 795 presos e 456 feridos. Os manifestantes tentaram
incendiar a Bolsa de Paris considerada um símbolo odiado do capitalismo.
Um comissário de polícia foi morto em Lyon por um caminhão.
Uma
vez na luta, os trabalhadores começaram a ter iniciativas que iam mais
além dos limites de uma greve normal. Um elemento fundamental na equação
foram os meios de comunicação de massas. Formalmente, são armas
poderosas nas mãos do Estado, mas também dependem dos trabalhadores, que
fazem funcionar as emissoras de rádio e televisão. No dia 25 de maio, a
rádio televisão estatal, a ORTF, entrou em greve. Suprimiram as
notícias das oito da noite. Os gráficos e jornalistas impuseram uma
espécie de controle operário sobre a imprensa. Os jornais burgueses
tinham que submeter seus editoriais ao escrutínio e deviam publicar as
declarações dos comitês de trabalhadores.
A
Assembléia Nacional discutiu a crise universitária e as batalhas do
Bairro Latino. Porém, os debates nos salões da assembléia já eram
irrelevantes. O poder havia escapado das mãos dos legisladores e agora
estava nas ruas. No dia 24 de maio, o presidente De Gaulle anunciou o
referendo no rádio e na televisão. O plano de De Gaulle de celebrar um
referendo foi frustrado pela ação dos trabalhadores. O general foi
incapaz até mesmo de imprimir as cédulas do referendo devido à greve dos
trabalhadores das gráficas franceses e a negativa de seus colegas
belgas de atuar como fura greves. Este não foi o único exemplo de
solidariedade internacional. Os condutores de trens alemães e belgas
detinham seus trens na fronteira francesa para não romper a greve.
As
forças da reação, até esse momento em estado de choque e obrigadas a
estar na defensiva, começaram a se organizar. Foram criados Comitês de
Defesa da República, CDR, como tentativa de mobilizar a classe média
contra os trabalhadores e estudantes. A correlação de forças de classe
não é uma questão puramente numérica do tamanho da classe trabalhadora
em relação ao campesinato e da classe média em geral. Uma vez que o
proletariado entre na luta decisiva e demonstra ser uma força poderosa
na sociedade, atrai rapidamente a massa explorada de camponeses e de
pequenos comerciantes que são vítimas dos bancos e dos monopólios. Este
fato era evidente em 1968, quando os camponeses levantaram bloqueios nas
estradas ao redor de Nantes e distribuíram comida grátis aos grevistas.
O mito do “Estado forte”
O
movimento pegou a classe dominante e o governo totalmente
desprevenidos. Estavam aterrorizados ante o movimento dos estudantes,
Pompidou admitia em suas memórias:
“Alguns...
pensaram que, ao reabrir a Sorbone e ao libertar os estudantes, eu
havia demonstrado fraqueza e que havia posto a agitação em marcha
novamente. Eu responderia simplesmente o seguinte: suponhamos que na
segunda-feira 13 de maio a Sorbone permanecesse fechada sob proteção
policial. Quem poderia imaginar que a multidão, avançando até
Denfert-Rocearau não conseguiria entrar levando tudo a sua frente como
um rio em uma inundação? Preferi dar a Sorbone aos estudantes que vê-la
tomada pela força”. (G. Pompidou. Por Rétablir une Verité, pp.
184-185).
Em outra parte acrescenta:
“A
crise era infinitamente mais séria e mais profunda; o regime se
manteria ou seria derrotado, mas não poderia ser salvo com uma simples
remodelação ministerial. Não era minha posição que estava em dúvida. Era
o general De Gaulle, a Quinta República e, até certo ponto, o próprio
poder republicano”. (Ibíd., p. 197, ênfase minha).
A
que se referia Pompidou quando falava que “o próprio poder republicano”
estava em perigo? O que queria dizer é que o Estado burguês estava em
perigo de ser derrotado. E, nessa idéia, tinha bastante razão. Mais a
frente Pompidou tentou acabar com a crise reabrindo a Sorbone, mas o
movimento simplesmente foi além, com uma manifestação de 250.000
pessoas. Aterrorizado com a possibilidade dos estudantes se unirem aos
trabalhadores e tomar o Elysée, o palácio presidencial foi evacuado.
De
Gaulle, inicialmente, depositou sua confiança nos dirigentes
estalinistas para salvar a situação. Disse a seu ajudante de Campo
Naval, François Flohic: “Não se preocupe, Flohic, os comunistas os
manterão sob controle”. (Phillippe Alexandre. L’Elysée em péril, p.299).
O
que essas palavras demonstram? Nem mais nem menos que o sistema
capitalista não poderia existir sem o apoio dos dirigentes operários
reformistas (e estalinistas). Este apoio lhes é muito mais valioso do
que qualquer quantidade de tanques e policiais. De Gaulle, como burguês
inteligente, entendia isso perfeitamente. Em uma tentativa de demonstrar
sua suprema indiferença em relação aos acontecimentos na França, o
presidente De Gaulle fez uma visita de estado à Romênia, onde foi
recebido com os braços abertos pelo “comunista” Ceausescu. Contudo, a
confiança do general não duraria muito.
A
essência de uma revolução, o que a caracteriza, é o fato das massas
começarem a participar ativamente dos acontecimentos, começarem a tomar
os problemas em suas próprias mãos. Quando voltou à França, os
dirigentes “comunistas” estavam perdendo o controle. A bandeira vermelha
tremulava nas fábricas, escolas e universidades, nas agências de
emprego e até mesmo em observatórios espaciais. O governo era impotente,
estava suspenso no ar devido à insurreição. O “Estado forte” gaullista
estava paralisado. O poder estava de fato nas mãos da classe
trabalhadora.
Os
informes da rápida deterioração da situação em Paris chocaram De
Gaulle. Frente à maré crescente de rebelião o presidente teve que
abandonar sua pose de indiferença, interromper sua viagem a Romênia e
regressar rapidamente a França. No palácio de Elysée, o presidente De
Gaulle proferiu as palavras imortais: “La réforme, oui; la chienlit,
non” (Reforma, sim, crianças pirracentas, não!). A palavra chienlit é
difícil de ser traduzida, se refere a uma criança que ainda não aprendeu
a utilizar o mictório.
Ao
utilizar esta linguagem, De Gaulle expressou seu desprezo pelos
“garotos” nas ruas. Porém, o movimento já havia ido mais além da etapa
das manifestações estudantis. Era como uma enorme bola de neve descendo
uma íngreme montanha, ganhando força e impulso a cada momento. As mais
inesperadas camadas sociais se viram arrastadas pelo rodamoinho da luta
revolucionária. Os profissionais do cinema ocuparam o festival de cinema
de Cannes. Importantes diretores do cinema francês retiraram seus
filmes da competição e o corpo de jurados renunciou, obrigando o
cancelamento do festival.
Calcula-se
que no dia 20 de maio 10 milhões de pessoas estavam em greve, o país
estava praticamente paralisado. No dia 22 de maio uma moção de censura
apresentada pelos partidos da oposição não foi aprovada, faltaram-lhes
11 votos para obter a maioria na Assembléia Nacional. O governo estava
em uma situação instável e De Gaulle recolhido ao desespero. Foi
precisamente neste momento que os dirigentes das confederações sindicais
lançaram um bote salva-vidas para De Gaulle, fazendo uma declaração, na
qual demonstravam sua disposição a negociar com a associação de
empresários e com o governo.
A
Assembléia Nacional aprovou uma anistia para os manifestantes.
Naturalmente! Não conseguiram esmagar o movimento através da repressão,
então as autoridades recorreram às concessões para tentar esfriar a
situação e ganhar tempo. Desta maneira, tanto o governo como os
dirigentes sindicais colaboraram para desviar o movimento revolucionário
e conduzi-los a canais seguros. Enquanto ofereciam concessões aos
dirigentes estudantis e sindicais, o Estado continuava com a repressão
seletiva dirigida contra aqueles que eram considerados elementos
subversivos. Como no caso de Daniel Cohn-Bendit, retiraram deste
estudante anarquista o visto de permanência no País. Foi um movimento
estúpido já que a influência real de Cohn-Bendit no movimento era
mínima. Mas a ação do governo conseguiu provocar uma manifestação de
massas em Paris para protestar contra esta medida.
De Gaulle desmoralizado
O
biógrafo de De Gaulle, Charles Williams, descreve de maneira gráfica
seu estado de ânimo às vésperas de seu discurso a nação no dia 24 de
maio:
“Não
há dúvidas que depois da excitação na Romênia, o general estava
profundamente abalado com o que encontrou em seu regresso a França.
Durante os seguintes três dias, a alguém que o visitasse depois de algum
tempo o general pareceria velho e indeciso, seu andar encurvado estava
cada vez mais acentuado. Parecia que tudo isso estava sendo demais para
ele.
“O
discurso de 24 de maio, quando se deu, foi um fracasso total. O general
parecia e soava pouco sincero, assustado. É certo, anunciou um
referendo sobre ‘participação’, mas não estava claro qual seria o
conteúdo concreto da pergunta e pareceu um truque para aqueles que lhe
escutaram. Disse que era o dever do Estado assegurar a ordem pública,
mas faltava a sua voz a velha ressonância e suas frases, ainda que
usasse a velha linguagem solene, de alguma maneira já não possuía a
mesma convicção. Apresentou-se como um homem velho, cansado e ferido.
Sabia que tinha perdido. ‘Não alcancei o objetivo’, disse nesta noite. O
melhor que Pompidou lhe disse foi: ‘Poderia ter sido pior’.
“Mas
o estado de ânimo de De Gaulle na manhã do dia 25 de maio havia
piorado. Estava, nas palavras de um de seus ministros, ‘prostrado,
encurvado, envelhecido’. Repetia uma e outra vez, ‘isto é uma confusão’.
Outro ministro se deparou com um homem velho que não ‘tinha planos para
o futuro’. O general mandou buscar seu filho Phillippe, que encontrou
seu pai ‘cansado’ e se deu conta de que quase não havia dormido.
Phillippe sugeriu que o pai poderia partir para o porto atlântico de
Brest – sombras de 1940 – mas disse a ele que não se renderia.
“Do
dia 25 ao dia 28 de maio, De Gaulle permaneceu em um estado de profundo
pessimismo. As negociações de Pompidou com os sindicatos foi uma farsa.
Simplesmente havia dado a eles tudo o que pediam: grandes aumentos
salariais, benefícios sociais e um aumento de 35% para o salário mínimo.
O único obstáculo era que, inclusive depois de ter assinado, a CGT
insistiu que tinham que ser ratificados por seus militantes. George
Séguy, o dirigente da CGT, foi rapidamente ao bairro parisiense de
Billancourt, onde 12.000 trabalhadores da Renault estavam em greve.
Quando apresentou o acordo aos trabalhadores, estes o humilharam
rechaçando-o de imediato. Os ditos acordos de Grenelle foram abortados.
“O
conselho de ministros se reuniu às três da tarde do dia 27 de maio,
pouco depois dos trabalhadores rechaçarem os acordos de Grenelle. O
general presidia o conselho, mas notou-se que seu coração e sua mente
estavam longe. Olhava seus ministros sem vê-los, seus braços jogados
sobre a mesa a sua frente, ombros caídos, aparentemente ‘totalmente
indiferente’ ao que se passava a seu redor. Houve uma discussão sobre o
referendo, o general aparentemente só ouviu pedaços da discussão” (C.
Williams, The Last Great Frenchman, A life of General De Gaulle, pp.
463-4-5, ênfase minha).
Estes
fragmentos da biografia favorável a De Gaulle reproduzem uma imagem
intensa de total desorientação, pânico e desmoralização em que estava
imerso. Segundo o embaixador norte-americano, De Gaulle lhe havia dito:
“o jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”.
Intervenção militar?
A
situação alcançou um ponto onde já não podia mais ser resolvida por
métodos parlamentares normais. O que poderia ser feito? A intervenção
militar foi uma das opções cogitadas por De Gaulle desde o começo da
greve geral. Nas primeiras etapas da greve, planos foram elaborados para
deter e aprisionar mais de 20.000 ativistas de esquerda no estádio de
inverno, onde seriam vítimas de um destino similar ao de seus homólogos
chilenos cinco anos mais tarde.
Porém,
a operação nunca foi posta em prática. Estes planos do governo francês
são idênticos aos planos de todas as classes dominantes na história
quando se deparam com a revolução. O governo do Czar Nicolau (“o
sangrento” como era chamado) era repleto de tais planos militares de
contingência antes de fevereiro de 1917. Mas, outra coisa bem diferente
era executar esses planos, como descobriu Nicolau a duras penas. O
decisivo de uma revolução não são os planos dos regimes, e sim a
correlação real de forças na sociedade. De Gaulle era um burguês muito
astuto, plenamente consciente da situação real (a princípio, como
veremos, subestimou o movimento, o resultado foi um erro muito sério.
Como os demais, não esperava que os trabalhadores franceses entrassem em
movimento).
De
Gaulle estava à beira do abismo. Aterrorizado pelo imenso alcance do
movimento, o general estava completamente pessimista. Estava convencido
de que os dirigentes comunistas chegariam ao poder. Inúmeras testemunhas
confirmam que De Gaulle estava totalmente atônito e desmoralizado, e
que pelo menos duas vezes contemplou a idéia de fugir do país. Seu
próprio filho havia pedido que ele escapasse por Brest, outras fontes
dizem que considerou a possibilidade de permanecer na Alemanha
Ocidental, onde visitaria o general Massu. De Gaulle era um político
inteligente e calculista que nunca agia por impulsos e raramente perdia
os nervos. Disse ao embaixador norte-americano: “o jogo acabou. Em
poucos dias os comunistas estarão no poder”. Acreditava nisso. E não era
só ele, a maioria da classe dominante também acreditava.
No
papel, De Gaulle tinha a disposição uma formidável máquina de
repressão. Havia cerca de 144.000 policiais (armados) de diferentes
categorias, dos quais 13.500 eram da tristemente famosa polícia
anti-distúrbios (CRS), e cerca de 261.000 soldados a postos na França ou
na Alemanha Ocidental. Se a questão é abordada de um ponto puramente
quantitativo, então deveria ser descartada não só a possibilidade de uma
transformação pacífica, como também da revolução em geral, e não
somente na França de 1968. Deste ponto de vista, nenhuma revolução
jamais poderia triunfar em toda a história. Mas a questão não pode ser
colocada desta maneira.
Em
toda revolução levantam-se vozes que tentam assustar a classe oprimida
com o espectro da violência, o derramamento de sangue e a
“inevitabilidade da guerra civil”. Kamenev e Zinoviev falavam exatamente
da mesma forma em vésperas da insurreição de Outubro. Hoje, Heinz
Dieterich e os reformistas na Venezuela utilizam a mesma linha de
argumentação para tentar colocar freios à revolução venezuelana.
“Os
adversários da insurreição, até mesmo nas fileiras do Partido
Bolchevique, encontravam muitos motivos para suas deduções pessimistas.
Zinoviev e Kamenev advertiam que não se podiam subestimar as forças do
adversário. ‘Petrogrado decide, mas em Petrogrado os inimigos dispõem de
forças importantes: cinco mil junkers perfeitamente armados e que sabem
lutar; um Estado Maior; batalhões de choque; cossacos; e uma parte
importante da guarnição, mais uma considerável artilharia disposta em
leque ao redor de Petrogrado. Além disso, quase seguramente os
adversários tentarão trazer tropas do front com a ajuda do Comitê
Executivo Central... ”
Trotsky respondeu às objeções de Kamenev e Zinoviev da seguinte forma:
“A
lista soa imponente, mas é apenas uma lista. Se um exército, em seu
conjunto, é um reflexo da sociedade, então quando a sociedade se divide
abertamente, ambos os exércitos são cópias dos bandos em combate. O
exército dos possuidores levava dentro de si o verme do isolamento e da
desagregação” (Leon Trotski, Historia de la Revolución Rusa, p. 1042).
Vítima
do pânico De Gaulle desapareceu de repente, viajou para a Alemanha onde
teve uma reunião secreta com o general Massu, o homem responsável pelas
tropas francesas a postos em Baden-Wurttemberg. O conteúdo preciso
destas conversas nunca foi conhecido, mas não é necessária muita
imaginação para se ter uma idéia do que foi perguntado: “Podemos contar
com o exército?” A resposta não está registrada em nenhuma fonte escrita
por razões óbvias. Contudo, The Times enviou seu correspondente à
Alemanha para entrevistar os soldados franceses, a grande maioria era de
filhos da classe trabalhadora que cumpriam o serviço militar
obrigatório. Um dos entrevistados respondeu à pergunta de se ele abriria
fogo contra os trabalhadores: “Nunca! Acho que seus métodos (dos
trabalhadores) podem ser um tanto duros, mas sou filho de um
trabalhador”.
Em
seu editorial The Times fazia a seguinte pergunta: “De Gaulle pode
utilizar o exército?” e respondia sua própria pergunta dizendo que
talvez pudesse utilizá-lo uma vez. Em outras palavras, bastaria apenas
um enfrentamento sangrento para romper em pedaços o exército. Esta era a
avaliação dos estrategistas mais duros do capital internacional daquela
época. Não há nenhuma razão para duvidar de sua palavra nesta ocasião.
Crise do Estado
No
dia 13 de maio uma organização sindical da polícia que representava 80%
do corpo policial publicou uma declaração em que “... considera a
declaração do primeiro-ministro um reconhecimento de que os estudantes
tinham razão, e uma renúncia total às ações da força policial que o
próprio governo ordenou. Nessas circunstâncias é surpreendente que não
se buscasse um diálogo efetivo com os estudantes antes que se
produzissem estes lamentáveis acontecimentos”. (Le Monde, 15/5/1968).
Se
esta era a postura da polícia, o efeito da revolução sobre a base do
exército seria ainda maior. E assim era, apesar da falta de informação,
existiam relatos de efervescência entre as forças armadas e inclusive um
motim na marinha. O porta-aviões Clemenceau, deveria ir ao Pacífico
para um teste nuclear, de repente deu meia volta e regressou a Toulon
sem explicações. Chegaram notícias de um motim a bordo que dizia que
haviam sido “perdidos no mar” vários marinheiros (Le Canard Enchiné.
19/6/68; foi publicado um relato completo em Action dia 14 de junho, mas
foi confiscado pelas autoridades).
Segundo
um famoso aforismo de Mao: “o poder emana da ponta do fuzil”. Porém, os
fuzis são empunhados por soldados que não vivem no espaço sideral,
estes também são influenciados pelo estado de ânimo das massas. Em
qualquer sociedade, a polícia é mais atrasada que o exército. Contudo,
na França, a polícia, citando um editorial de The Times (31/5/1968),
“ferve de descontentamento”.
“Ferve
de descontentamento com o tratamento que o governo lhes dá” dizia o
artigo, “e o departamento encarregado da informação sobre a atividade
estudantil esteve deliberadamente privando o governo de informação sobre
os dirigentes estudantis, em apoio a suas reivindicações salariais.
“...
Tampouco a polícia esteve muito impressionada com o comportamento do
governo desde que começaram os distúrbios. ‘Estão aterrorizados em
perder nosso apoio’ disse um homem.
“Tal
descontentamento é uma das razões da aparente inatividade da polícia de
Paris nestes últimos dias. Na semana passada, homens de diferentes
departamentos locais negaram-se a sair dos cruzamentos e praças da
capital” (The Times; 31/5/1968; ênfase minha).
Um
panfleto publicado por membros do RIMECA (regimento de infantaria
mecanizada) localizado em Mutzig, perto de Estrasburgo, indicava que
seções do exército já estavam sendo afetadas pelo ânimo das massas.
Incluía os seguintes fragmentos:
"Como
todos os soldados da leva, estamos confinados aos quartéis. Estão nos
preparando para intervir como forças repressivas. Os trabalhadores e os
jovens precisam saber que os soldados do contingente NUNCA DISPARARÃO
CONTRA OS TRABALHADORES. Nós dos Comitês de Ação nos opomos a todo custo
que os soldados cerquem as fábricas.
“Amanhã
ou depois de amanhã esperam que cerquemos uma fábrica de armamentos,
cujos trezentos trabalhadores querem-na ocupar. CONFRATERNIZAREMOS.
“Soldados do contingente, formem vossos comitês! (Citado em Revolutionary Reherasals; p. 26).
“Soldados do contingente, formem vossos comitês! (Citado em Revolutionary Reherasals; p. 26).
A
publicação deste panfleto foi claramente um exemplo excepcional dos
elementos mais revolucionários entre os conscritos. Mas, em meio a uma
revolução de proporções tão massivas, é possível duvidar que a base do
exército rapidamente se contagiasse com o vírus da rebelião? Os
estrategistas do capital internacional não duvidavam disso, muito menos
seus homólogos franceses.
Quem salvou De Gaulle?
Não
foi absolutamente o exército nem a polícia (estes estavam tão
desmoralizados que inclusive a reacionária inteligência, como vimos, se
negou a colaborar com o governo contra os estudantes) que salvaram o
capitalismo francês, e sim a atuação dos dirigentes sindicais e
estalinistas. Esta conclusão não é apenas nossa, também encontra apoio
na Enciclopédia Britânica:
“De
Gaulle parecia incapaz de controlar a crise ou de compreender sua
natureza. Contudo, os dirigentes comunistas e sindicais
proporcionaram-lhe um respiro, opuseram-se a qualquer levantamento mais
ousado, evidentemente temiam a perda de seus seguidores frente a seus
rivais mais extremistas e anarquistas”.
Acuado,
Georges Pompidou aceitou negociar com todos. Quando a classe dominante
está ameaçada de perder tudo não se importa em alterar seus planos
originais e torna-se disposta a fazer grandes concessões. Para tirar os
trabalhadores das fábricas ocupadas e dissolver seu poder não hesitaram
em oferecer aos dirigentes sindicais coisas além do que estes últimos
pediam originalmente, aumento do salário mínimo, redução da jornada de
trabalho e da idade de aposentadoria, restauração do direito de
organização, etc.; em uma tentativa de deter os estudantes, Pompidou
aceitou a demissão do Ministro da Educação.
Tanto
o governo como os dirigentes sindicais estavam alarmados com o alcance
do movimento e estavam decididos a detê-lo. No dia 27 de maio chegou-se a
um acordo entre os sindicatos, as associações de empresários e o
governo. Mas os dirigentes sindicais tinham a árdua tarefa de apresentar
o acordo aos trabalhadores. Apesar das grandes concessões, os
trabalhadores da Renault e de outras grandes empresas negaram-se a
voltar ao trabalho. Lembro-me que estava em Paris em um bar com outras
pessoas assistindo as assembléias de massas pela televisão dentro da
gigantesca fábrica da Renault, onde se congregava um grande número de
trabalhadores, alguns deles sentados nas gruas e nos cavaletes para
escutar George Ségui, o secretário geral da CGT, que leu uma lista com
aquilo que os empresários ofereciam: grandes aumentos salariais,
pensões, redução da jornada e assim sucessivamente. Mas no meio de seu
discurso foi interrompido pelos trabalhadores que cantavam:
"Gouvernement populaire! Gouvernement populaire!". Lembro-me que ele não
pôde terminar sua intervenção.
Nesse
momento os trabalhadores já tinham consciência de sua própria força,
tinham o poder a seu alcance e não estavam dispostos a abrir mão dele.
Às 17 horas, 30.000 estudantes e trabalhadores marcharam desde Boelins
ao estádio Cherléty, onde celebraram uma reunião com a presença de
Pierre Mendés-France. Nesse mesmo dia a CGT convocou, previamente a este
acordo, uma manifestação que conseguiu meio milhão de trabalhadores e
estudantes nas ruas de Paris. Uma vez mais, o objetivo dos dirigentes
sindicais e do Partido Comunista era proporcionar uma válvula de escape
ao movimento, controlar o que deslizava de suas mãos.
A iniciativa passa a reação
No
dia 30 de maio no rádio, o presidente De Gaulle anunciou a dissolução
da Assembléia Nacional e disse que as eleições seriam realizadas dentro
do calendário habitual. George Pompidou continuaria sendo o
primeiro-ministro. Insinuou também que usaria a força para manter a
ordem, se necessário. Era uma mensagem dirigida aos dirigentes sindicais
e ao Partido Comunista. Estava oferecendo a eles a tentadora
perspectiva das eleições e uma futura secretaria ministerial sob o
regime burguês, e ao mesmo tempo era uma advertência de que a burguesia
não entregaria o poder sem lutar.
O
gabinete foi remodelado e as eleições convocadas para os dias 23 e 30
de junho. Ao mesmo tempo, De Gaulle tentou mobilizar suas forças fora do
parlamento. Algumas dezenas de milhares de apoiadores do governo se
manifestaram desde a Concordia até o Étoile. Foram realizadas
manifestações similares de apoio ao governo em toda a França. Mas uma
olhada mais atenta nas fotografias revelava imediatamente a verdadeira
natureza dessas manifestações: prefeitos aposentados enrolados em faixas
tricolores, cidadãos de classe média barrigudos, pensionistas e outras
figuras parecidas indignadas e insatisfeitas com a sociedade.
Basta
comparar estas fotografias com as manifestações massivas do
proletariado alguns dias antes para descobrir a verdadeira correlação de
forças. Tudo de vivo, forte e vibrante da sociedade francesa se reuniu
sob a bandeira da revolução, enquanto que tudo de opaco, velho e
decadente estava do outro lado das barricadas. Um bom empurrão bastava
para derrubar tudo. O que faltava era um golpe de misericórdia, mas este
nunca foi dado.
A
classe trabalhadora não pode permanecer em uma situação de agitação
constante. Não pode ser ligada ou desligada como uma lâmpada. Quando a
classe se mobiliza para mudar a sociedade deve ir até o final ou
fracassa. Ocorre o mesmo em uma greve. No início os trabalhadores estão
entusiasmados e dispostos a participar nas assembléias de massas. Estão
dispostos a lutar e fazer sacrifícios. Mas se a greve não tem um final à
vista, o ambiente muda. Começando pelos elementos mais débeis, o
cansaço finalmente chega. O comparecimento às assembléias de massas cai e
os trabalhadores voltam ao trabalho.
Os
dirigentes sindicais fizeram bom uso das concessões cedidas
apressadamente pelos capitalistas, como um homem desesperado que lança
um salva-vidas de um barco que afunda. O salário mínimo subiu para três
francos à hora, os salários aumentaram e foram concedidas outras
melhorias. Na ausência de outra perspectiva, muitos trabalhadores
aceitaram o acordo que os dirigentes sindicais apresentaram como uma
vitória. Na terça-feira, depois de um fim de semana com feriado no
início de junho, a maioria dos grevistas pouco a pouco abandonou a luta,
e os trabalhadores regressaram a seus trabalhos.
1968 foi uma revolução
O
que é uma revolução? Trotski explica que uma revolução é uma situação
tal onde a massa de homens e mulheres normalmente apática começa a
participar de maneira ativa na vida da sociedade, quando adquire
consciência de sua força e se move para tomar seu destino em suas mãos.
Isso é uma revolução. E foi o que aconteceu em uma escala colossal na
França em maio de 1968.
Os
trabalhadores franceses estenderam os músculos, tiveram consciência do
enorme poder que tinham em suas mãos. Vimos aqui o imenso poder da
classe trabalhadora na sociedade moderna: não se acende nem uma lâmpada,
nenhuma roda se move e nenhum telefone toca sem a permissão dos
trabalhadores. O maio de 1968 foi a resposta final a todos os covardes e
céticos que duvidam da capacidade do proletariado para mudar a
sociedade.
A
correlação de forças da classe se expressou, não como um mero potencial
ou uma estatística abstrata, e sim como um poder real nas ruas e nas
fábricas. Na realidade, o poder estava nas mãos dos trabalhadores, mas
eles não sabiam. Como qualquer outro exército, a classe trabalhadora
necessita de uma direção. E isso era o que estava ausente em maio de
1968. Aqueles que deveriam ter proporcionado a direção, os dirigentes
das organizações de massas da classe, os sindicatos e o Partido
Comunista, não tinham a perspectiva da tomada do poder. Sua única
preocupação era terminar a greve o mais rápido possível, devolver o
poder a burguesia e retornar à “normalidade”.
Uma
greve geral é diferente de uma greve normal porque coloca a questão do
poder. O que está em jogo não é esse ou aquele aumento salarial, e sim
quem é que manda na casa? No transcurso da luta a consciência dos
trabalhadores aumentou a uma velocidade vertiginosa. Começaram a
compreender que não se tratava de uma greve normal por reivindicações
econômicas, mas algo maior. Tiveram consciência do poder em suas mãos e
enxergavam a debilidade daqueles que se supunha representar todo o poder
do Estado. A única coisa que faltou foi a eleição de delegados em cada
centro de trabalho e a vinculação de comitês de greve em cada cidade e
região, culminando na formação de um comitê nacional, que poderia ter
tomado o poder em suas mãos, arremessando o velho poder estatal na lata
de lixo da história.
Porém,
nada disso foi feito e o enorme potencial revolucionário do movimento
evaporou-se, como o vapor que se dissipa inofensivamente no ar se não há
uma câmara de pistões que o concentre. Por fim, os trabalhadores
regressaram ao trabalho e a classe dominante concentrou novamente o
poder em suas mãos. Quando o movimento começou a minguar, o Estado
iniciou sua vingança. Houve incidentes violentos, sobretudo no dia 11 de
junho com 400 feridos, 1.500 detidos e um manifestante morto com um
tiro em Montbéliard. No dia seguinte, foram proibidas as manifestações
na França, pouco depois, os estudantes foram expulsos do Odéon e, dois
dias mais tarde, da Sorbone.
Começou
então a criminalização. Na cadeia estatal de rádio e televisão, ORTF,
foram demitidos 102 jornalistas por suas atividades durante os
acontecimentos. Enviaram a polícia às universidades de Nanterre e
Sorbone para controlar os documentos de identidade dos estudantes e não
saíram de lá antes de 19 de dezembro. Foi aprovado um pacote de medidas
de austeridade no dia 28 de novembro na Assembléia Nacional. O Estado
que não hesitou em esmagar os crânios dos estudantes e grevistas nas
manifestações agora demonstrava clemência para com os fascistas, os
terroristas de extrema direita da OAS. Enquanto Cohen-Bendit era expulso
da França, Georges Bidault poderia regressar e Raoul Salan era
libertado da prisão.
Os
dirigentes reformistas e estalinistas foram castigados por sua covardia
e a classe dominante negou-lhes os postos que almejavam intensamente. A
campanha eleitoral começou em 10 de junho. No primeiro turno das
eleições, a federação dos partidos de esquerda e os comunistas perderam
terreno. No segundo turno, uma semana mais tarde, os partidos de direita
conseguiram uma esmagadora maioria. A esquerda perdeu 61 cadeiras e os
comunistas 39. Pierre Mendés-France (uma figura histórica da esquerda
francesa) não foi reeleito em Grenoble. O Partido Comunista, que em 1968
era o principal partido da classe trabalhadora francesa, entrou em
declínio e foi superado mais tarde pelo Partido Socialista, que em 1968
conseguira apenas quatro por cento dos votos e, portanto, parecia morto.
O sindicato comunista, CGT, perdeu apoio frente à CFDT que em 1968
manteve uma posição mais combativa.
O
maravilhoso movimento dos trabalhadores terminou em derrota. Porém, as
tradições de Maio de 1968 permanecem na consciência dos trabalhadores da
França e do mundo. Hoje, depois de um longo período de boom, o sistema
capitalista está entrando novamente em crise e sairão à superfície todas
as contradições que se acumularam durante os últimos vinte anos. Em
toda a Europa estarão na ordem do dia grandes enfrentamentos de classe.
Não
temos tempo para aqueles ex-revolucionários pequeno-burgueses que falam
de 1968 em termos sentimentais e nostálgicos, como se fosse história
antiga sem relevância prática alguma para o mundo em que vivemos. Mais
cedo ou mais tarde os acontecimentos de 1968 reaparecerão, mas em um
nível inclusive superior. Qual é o candidato mais provável para este
cenário? Poderia perfeitamente ser a França, mas também a Itália,
Grécia, Portugal ou Espanha ou qualquer outro país, e não só na Europa.
Esperamos com impaciência o futuro. Desejamo-lo e nos preparamos para
ele. Estamos tentando preparar a vanguarda, assim da próxima vez
triunfaremos. E diante deste glorioso aniversário dizemos: A revolução
não morreu. Viva a revolução!