Orson Welles faria 100 anos. E o que mais dizer desse artista, e
dessa obra, sobre os quais já se gastou uma floresta de papel e rios de
tinta? Simplesmente que é inesgotável. Isto é, há sempre algo mais a
ser dito, como acontece com os clássicos. Não por acaso, aquele que é
considerado o grande especialista contemporâneo em Welles, o crítico
norte-americano Jonathan Rosenbaum, intitula seu livro fundamental de
Discovering Welles. Descobrindo Welles. Por que o gerúndio? “Porque a
compreensão de sua obra é um processo, jamais terminado”, disse
Rosenbaum durante sua visita ao Brasil, mês passado, por ocasião do É
Tudo Verdade, festival de documentários cujo nome adota o título do
filme inacabado de Welles, rodado no Brasil.
Esse fato nos fornece um atalho para lembrar que a relação de Welles
com o Brasil foi e continua a ser muito importante em sua biografia. Foi
para cá que Welles, já uma celebridade, veio filmar uma obra de
encomenda, parte da política da boa vizinhança de Roosevelt, em plena 2ª
Guerra Mundial.
Era 1942, e o filme se chamaria It’s All True – É Tudo Verdade.
Incluiria um episódio no México, chamado My Friend Bonito. Welles,
ocupado com a finalização do seu segundo longa, Soberba (The Magnificent
Ambersons), passou essa tarefa ao cineasta Norman Foster. O próprio
Welles veio ao Brasil filmar o carnaval, e também uma história de
jangadeiros que havia sido capa da revista Time. Esses quatro homens
viajaram numa jangada de Fortaleza ao Rio de Janeiro para reivindicar
direitos trabalhistas ao presidente Getúlio Vargas. A navegação ficou
famosa e Welles quis reproduzi-la no filme. Na reconstituição, uma onda
virou a embarcação e e o líder dos jangadeiros afogou-se. Mesmo assim, e
enfrentando a oposição do estúdio RKO, Welles continuou a filmagem,
agora como homenagem a Jacaré. O filme foi engavetado e redescoberto
apenas em 1985 por um diretor da Paramount, Fred Chandler. Por fim, em
1993, Bill Krohn e Myron Meisel lançaram o documentário É Tudo Verdade –
Baseado em um Filme Inacabado de Orson Welles. O material referente à
saga dos jangadeiros é esplêndido, filmado por Welles e fotografado por
George Fanto. Poucas vezes o Brasil e sua gente foram registrados em
película de forma tão bela.
Essa passagem da biografia de Welles é relembrada por ele como ponto
traumático de sua carreira. Na imensa entrevista, dada ao longo de dez
anos ao também cineasta Peter Bogadanovich (Este É Orson Welles, Globo,
1992), o diretor a relembra nos seguintes termos: “O episódio
sul-americano é o desastre-chave da minha história…a lenda que nasceu
daquele caso me fez perder a chance de filmar.” Welles ficou com a fama
de um louco que desperdiçava dinheiro dos estúdios. Criou-se o mito e,
como se sabe, clichês aderem às pessoas como ostras à rocha. Welles
carregou o estereótipo ao longo de toda sua vida. A verdade, como lembra
o diretor e produtor Richard Wilson, amigo de Welles desde os tempos do
Mercury Theater, pode ser outra: “Tendo recebido um pedido para fazer
um filme não-comercial, Welles foi depois censurado por ter feito um
filme não-comercial”. Preconceitos não precisam de base de realidade
para se estabelecer e se manter.
Essa estada brasileira de Welles tornou-se matriz do cineasta
brasileiro Rogério Sganzerla, papa do Cinema dito Marginal e autor de
uma das obras-primas do cinema brasileiro, O Bandido da Luz Vermelha
(1968). Sobre Welles e sua “desastrada” experiência cinematográfica nos
trópicos, Sganzerla filmou Nem Tudo É Verdade (1986), Tudo É Brasil
(1987), A Linguagem de Orson Welles (1990) e O Signo do Caos (2003), seu
último filme e testamento.
A atriz e diretora Helena Ignez, viúva de Sganzerla, conta que o
marido, desde os 17 anos de idade, admirava e escrevia sobre Welles.
“Era uma devoção, que se transformou em diálogo de obras, mesmo que os
dois jamais tenham se conhecido pessoalmente.” Helena conta que
Sganzerla ficou chocado ao saber da morte de Welles, em 1985. “Foi como
se tivesse falecido uma pessoa da família”, diz. A morte de Welles veio
num momento em que seu amigo Richard Wilson, havia por fim marcado um
encontro entre ele e Sganzerla. De qualquer forma, a inspiração de
Welles foi fundamental para a obra de Sganzerla, em sua leitura, digamos
assim, tropicalista da passagem do autor de Cidadão Kane pelo Brasil. A
vitalidade do país, e, ao mesmo tempo, a condição trágica de sua
cultura aparecem em filmes como Tudo é Brasil e O Signo do Caos, através
da figura interposta de Welles. Um grande diálogo entre artistas que
não se conheceram. “Ouvi do curador da grande Mostra retrospectiva de
Welles no Festival de Locarno, quando ele nos pediu o direito de
exibição de Nem Tudo é Verdade, que nenhuma mostra internacional sobre
Orson Welles seria completa se não tivesse um filme de Rogério. Bill
Khron, diretor do documentário It’s All True, fez uma referência
extraordinária: que assim como o século vinte foi de descoberta da obra
de Orson Welles, o vinte e um será o da descoberta do cinema de Rogério
Sganzerla.”, diz Helena Ignez.
Via Sganzerla, mas também por via direta, Welles atingiria a geração mais jovem do cinema brasileiro, em especial em Pernambuco, epicentro do melhor cinema de autor praticado hoje no País. That’s a Lero Lero (1994), de Lírio Ferreira e Amin Stepple, faz ficção sobre uma visita real de Welles a Recife durante a filmagem de It’s All True. Na verdade, uma grande farra, durante a qual, entre bares e cabarés, Welles troca ideias com jornalistas locais. Desse veio nasceria o novo cinema pernambucano, batizado de Árido Movie, com seu longa inaugural, Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, marco fundador do novo cinema pernambucano e seus autores, rebeldes e criativos, como Lírio e Paulo, Claudio Assis, Hilton Lacerda e outros. Autores de filmes que trazem uma inequívoca marca wellesiana.
As filmagens e o convívio com Welles em Fortaleza também foram
registrados e deixaram marcas na produção local. O ensaísta Firmino
Holanda escreveu um livro fundamental sobre o assunto – Orson Welles no
Ceará (Edições Democrito Rocha, 2001). Holanda, em parceria com Petrus
Cariry, dirigiu também um bonito filme sobre o episódio dos jangadeiros –
Cidadão Jacaré. Este ano, em junho, o festival Cine Ceará presta
homenagem a Welles e relembra sua experiência no nordeste brasileiro.
De qualquer forma, se para o Brasil a conturbada passagem de Welles
gerou bons frutos, para ele mesmo pode ter sido problemática e mesmo
trágica. Nunca mais readquiriu a confiança dos produtores e teve de
fazer seus filmes com muita dificuldade, de maneira independente (o que,
por outro lado, beneficiou a autoria desses filmes).
O fato é que, durante muito tempo, Welles foi considerado cineasta de
uma obra só, tamanha a influência de Cidadão Kane que, apesar de ocupar
durante muito tempo o topo do cânone do cinema de autor, não foi a
unanimidade que se pensa. Houve tentativas de diminui-lo e obras famosas
relativizam o mérito de Welles no próprio filme. A mais conhecida
talvez seja Rising Kane (Criando Kane), da crítica da New Yorker Pauline
Kael, tentativa de colocar o roteirista Herman Mankiewicz como grande
responsável pelas qualidades de Kane. Welles nunca negou a importante
participação de Mankiewicz na obra – inclusive é do roteirista a
invenção de “rosebud”, a última palavra pronunciada por Kane no leito de
morte e cujo significado desconhecido estrutura toda a narrativa. Mas o
fato é que, do roteiro ao filme o caminho é longo, como sabemos todos.
Aos poucos as outras obras de Welles foram se impondo. A Marca da
Maldade, Grilhões do Passado, F for Fake (Verdades e Mentiras) e mesmo
as inacabadas como Quixote. Michelangelo deixou Pietàs inacabadas e não
menos comoventes por isso. Ver Fallstaff, restaurado, é uma experiência
que não se esquece. E, se essas obras não atingiram a altura de Kane
(como poderiam?), mostram um cineasta sempre inquieto, renovador,
corrosivo, jamais satisfeito com a forma atingida e dominada. Marcas,
portanto, da modernidade e suas relações com a incompletude.
Welles morreu em 1985, mas o velho mago ainda deixou um último coelho
a ser tirado da cartola – seu inédito The Other Side of the Wind, O
Outro Lado do Vento, cujo lançamento vem sendo prometido para este ano. O
filme, alusivo à própria história de Welles, traz o confronto entre um
velho diretor (John Huston) e um novo (Peter Bogdanovich). Esse filme,
problemático, tem sido anunciado anos a fio, mas sempre esbarra num
cipoal jurídico de direitos autorais. Parece que está prestes a ser
desenredado, como anunciou reportagem recente do jornal New York Times.
Os direitos do filme, no qual Welles trabalhou durante os últimos 15
anos de vida, estão divididos entre sua última mulher, Oja Kodar, a
filha, Beatrice Welles, e uma companhia franco-iraniana, L’Astrophore.
Oja diz que, motivadas pelo centenário de Welles, as partes estão
chegando a um acordo. Tomara. Semana que vem Oja Kodar desembarca no
Brasil e pode ser portadora dessa boa notícia. Seria uma espécie de
justiça poética, reencontro de Welles com o Brasil.
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