Há 90 nos, estourava na Rússia a primeira revolução comunista
vitoriosa da história. Operários, camponesese soldados pegavam em armas
para aniquilar a burguesia. E viravam protagonistas do acontecimento
mais importante do século 20
Era 24 de outubro de 1917. Quase desmaiando de cansaço, dois homens
relaxavam um pouco, deitados no chão de uma sala escura em um edifício
de Petrogrado, atual São Petersburgo. O mais novo, um judeu ucraniano de
38 anos, cultivava uma farta cabeleira desgrenhada e usava óculos
redondos. Seu companheiro, então com 47 anos, quase já não tinha
cabelos, apesar da pouca idade. E chamava a atenção por seus olhos
amendoados, uma herança da família de origem tártara. Do lado de fora
daquele prédio, no outono frio e nublado da Rússia, ressoavam marchas e
palavras de ordem. Olhando para o teto, o mais velho traçou com a ponta
do dedo indicador um círculo sobre a cabeça e disse: “Tudo gira”.
O jovem senhor de olhos estreitos era Vladimir Ilitch Ulianov, mais
conhecido como Lenin, apelido adotado no submundo revolucionário. Quem
estava a seu lado era o camarada Lev Bronstein, que também havia cunhado
um codinome famoso: Trotski. Os dois tinham boas razões para estar
exaustos. Nos dez dias anteriores, eles haviam organizado, articulado e
desencadeado um dos eventos mais importantes da história mundial.
Enquanto descansavam naquele quartinho do Instituto Smólni – antiga
escola para moças da nobreza, agora sede do Partido Comunista –, seus
correligionários e aliados tomavam o poder nas ruas de Petrogrado e em
outras cidades-chave do país. Era o “Outubro Vermelho”. A Revolução
Russa, que havia começado alguns meses antes, chegava ao clímax. Estava
nascendo o primeiro Estado socialista do mundo.
Todo poder aos sovietes
Lenin sabia usar as palavras como ninguém. E tinha a exata noção do
que dizia ao afirmar que, naquele momento, tudo estava girando.
“Revolução” vem do latim “revolvere”, ou “girar”, um termo que, na
Antiguidade, designava o movimento dos planetas no espaço sideral. Em
1688, ganhou sentido político pela primeira vez, quando os ingleses
batizaram de Revolução Gloriosa seu levante contra a monarquia
absolutista. No século seguinte, ocorreriam mais dois grandes e
violentos “giros” – as Revoluções Americana e Francesa, que criaram
novos sistemas de governo e colocaram o mundo na órbita da modernidade.
Quando a Revolução Russa começou, em fevereiro de 1917, ela se
parecia bastante com as anteriores. Em princípio, a maioria dos
revolucionários queria apenas derrubar a dinastia Romanov, que governava
o Império Russo com mão de ferro desde o século 17. Numa época em que
as nações européias se modernizavam a todo vapor, a Rússia czarista era
uma relíquia monstruosa da Idade Média: um gigante com cerca de 140
milhões de habitantes, sem parlamentos, sem partidos de oposição, sem
liberdade de imprensa. Camponeses e trabalhadores urbanos viviam à
míngua. Quem reclamava costumava amargar um longo e penoso exílio nas
planícies geladas da Sibéria. O resultado dessa trágica equação social e
política não poderia ser outro: o regime caiu de maduro, em meio aos
tumultos da Primeira Guerra Mundial.
Após a queda do czar Nicolau II, a primeira opção dos russos foi por
um esboço de democracia. Um governo provisório, formado por liberais e
socialistas moderados, tentou colocar ordem na casa convocando eleições.
Àquela altura, no entanto, os marxistas bolcheviques liderados por
Lenin já haviam conquistado enorme influência perante os chamados
sovietes, conselhos populares formados por operários, camponeses e
soldados. Legítimos representantes das classes sociais mais oprimidas,
nos sovietes residia o poder de fato. Eles derrubariam o
recém-instaurado governo liberal no segundo round da revolução, em
outubro de 1917. O povo, guiado por uma vanguarda revolucionária,
assumiria o controle do Estado. “Todo poder aos sovietes”, conclamava
Lenin. Para muitos historiadores, o triunfo comunista no episódio que
agora completa 90 anos foi o acontecimento mais importante do século 20.
Pesadelo totálitário
Naqueles vertiginosos dias de outubro, a Revolução Russa seguiu um
caminho inédito e extraordinário. Lenin, Trotski e seus adeptos sonhavam
com algo muito mais grandioso do que qualquer outra revolução já
realizara. Queriam inverter a pirâmide social, abolir a propriedade
privada e colocar todo o poder nas mãos dos trabalhadores. “Eles
almejavam um processo de transformação completa, não só de toda ordem
política e socioeconômica preestabelecida, mas da própria existência
humana”, afirma o historiador americano Richard Pipes em História
Concisa da Revolução Russa. “Em outras palavras, queriam virar o mundo”.
Eram ambições épicas, que refletiam uma confiança quase religiosa na
razão e no progresso da humanidade. Como escreveu Edmund Wilson no
clássico Rumo à Estação Finlândia: os revolucionários acreditavam que o
evangelho marxista podia ordenar o presente e determinar a “história do
futuro”.
Mas o século 20, que para os bolcheviques marcaria o início de uma
idade dourada, acabou sendo o mais violento de todos os tempos. E a
utopia socialista, alguns anos depois da Revolução Russa, iria se
converter em pesadelo totalitário, tragicamente semelhante à monarquia
absoluta que ela havia derrubado. Dos czares, o regime soviético acabou
herdando a ânsia imperialista. Que o digam os habitantes muçulmanos da
atual Chechênia, vítimas de uma tripla ironia histórica: conquistados
pelos exércitos dos czares, foram oprimidos e deportados pelas falanges
soviéticas e até hoje sofrem o jugo da Rússia de Vladimir Putin.
Para Osvaldo Coggiolo, especialista em História Contemporânea da
Universidade de São Paulo (USP), o “fracasso” da Revolução Russa não
deve obscurecer a pureza de suas intenções. “O objetivo dos
revolucionários era levar os operários ao poder, mas as circunstâncias
históricas não permitiram”, diz o historiador. “Sempre à beira da
destruição, o Estado socialista fez o que pôde para sobreviver a
conflitos internos e a duas guerras mundiais. E, apesar de todos os
obstáculos, a URSS transformou-se em uma potência capaz de competir com
os EUA durante a Guerra Fria.” Outros estudiosos, no entanto, acreditam
que o levante comunista de 1917 estava condenado desde seu início.
Calcada na ditadura de partido único, essa busca pela utopia só poderia
conduzir a seu oposto. “A maioria dos que empreenderam a revolução tinha
mesmo ideais nobres, mas irrealizáveis”, escreve o historiador
britânico Orlando Figes em A Tragédia de um Povo. Seja como for, em uma
coisa os herdeiros e discípulos de Lenin tiveram sucesso: como você
descobrirá nas próximas páginas, eles realmente fizeram o mundo girar.
A foice e o martelo
A luta proletária e camponesa contra a burguesia não foi travada
apenas com baionetas, mas também com imagens. Assim que o czar Nicolau
II foi deposto, a insígnia do czarismo – uma águia de duas cabeças –
rapidamente desapareceu de repartições públicas e documentos oficiais.
Em seu lugar apareceram, inicialmente, um martelo e um arado, que já
eram usados nos uniformes das tropas bolcheviques e representavam a
união de operários e camponeses em sua marcha revolucionária.
Em 1922, com a revolução já consolidada, o Partido Comunista decidiu
trocar o arado por um símbolo mais agressivo – uma foice. Assim nasceu a
bandeira do primeiro Estado socialista do mundo: foice e martelo
sobrepostos em um campo vermelho, cor tradicional da luta operária desde
o século 19. O brasão soviético, usado em selos e ministérios, foi
ainda mais eloqüente quanto às pretensões globais da revolução: mostrava
a foice e o martelo flutuando sobre o globo terrestre. Embaixo, o lema
cunhado por Karl Marx e Friedrich Engels, pais do comunismo, nas 17
línguas faladas na ex-URSS: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”.
Um tiro pela culatra
Certa vez, em meados do século 19, um grupo de discípulos perguntou a
Karl Marx o que ele achava de uma possível revolução socialista na
Rússia. “Duvido muito”, respondeu o autor de O Capital. Marx acreditava
que a classe operária, surgida com a Revolução Industrial, iria se
levantar em todo o mundo para destruir o capitalismo. E que esse
movimento começaria pelos países mais industrializados da época, como
Inglaterra e Alemanha. Os comunistas ingleses e franceses jamais tiraram
a revolução do papel. Na Alemanha, contudo, a história foi diferente.
Em novembro de 1918, um ano depois do “Outubro Vermelho”, soldados e
operários alemães rebelaram-se contra o governo do imperador Guilherme
II. Como na Rússia, o estopim da revolta foi a catástrofe da Primeira
Guerra Mundial. Greves e motins incendiaram o país. Resultado: o kaiser
foi obrigado a renunciar, e a Alemanha saiu oficialmente da guerra. O
Partido Comunista, percebendo o momento de fragilidade do regime, tentou
tomar o poder em janeiro de 1919. Mas uma aliança entre a classe média,
o Exército e os remanescentes da monarquia sufocou o movimento. A
revolução frustrada acabou no assassinato brutal da judia polonesa Rosa
Luxemburgo, líder dos comunistas alemães. E o medo de outro levante
socialista começou a empurrar o país para a extrema direita. Resultado:
em 1920, surgiu na Alemanha o partido nazista – que 13 anos mais tarde
conduziria Adolf Hitler ao poder.
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