No continente africano, onde a humanidade teve sua origem, reino da
diversidade, busquemos fazer um esforço para tentar imaginar uma
floresta onde macacos vivem em harmonia com a natureza e entram em
contato com agentes microscópicos por meio da picada de mosquitos –
esses sem lhe causar mal algum. Este lugar é a Floresta de Zika, em
Uganda.
Em 1947, foi identificado entre os primatas dessa floresta um vírus
transmitido por meio de relação sexual e, principalmente, pela picada de
mosquitos irmãos do nosso velho conhecido Aedes aegypti, muito parecido com o que transmite a dengue ou a febre amarela urbana.
Em algum momento impreciso do final da primeira metade do século XX, o
homem entrou nesse ciclo aparentemente harmônico entre macaco e vírus e
passou a ser o que chamamos de hospedeiro acidental. Foi assim com o
Zika e outras doenças infecciosas como malária, febre amarela e doença
de chagas.
Elas são resultado do avanço do homem sobre a natureza, assim como do
modelo hegemônico de convivência nas sociedades modernas que gerou os
grandes conglomerados urbanos repletos de desigualdades, que propiciam
um novo ciclo entre homem e mosquito transmissor mantendo a circulação
viral dessa arbovirose e a perpetuação dessas doenças.
Diferentemente do macaco, no homem, o Zika causa doença e complicações
ainda pouco conhecidas. A doença já foi identificada na África, no
Sudeste Asiático, em Ilhas do Pacífico e aportou na América do Sul
provavelmente pelo Oceano Pacífico, em 2014. Há registros de casos no
Brasil na época da Copa do Mundo, porém foi só em 2015 que foi
confirmado o primeiro caso de transmissão ocorrida dentro do País, na
região Nordeste.
Por conta dos aglomerados populacionais em condições sanitárias
frágeis somado à presença maciça do vetor, que também transmite a
dengue, o Brasil constitui-se como um celeiro propício para a
consolidação do Zika como problema de saúde pública.
O período entre a aquisição do vírus por meio da picada do Aedes aegypti
e o aparecimento dos sintomas varia entre 3 e 12 dias, sendo que apenas
uma em quatro pessoas irão desenvolver sintomas da doença. Por
apresentar os sintomas muito similares aos da dengue, mas com duração
mais curta, a infecção pelo Zika foi sempre de difícil confirmação desde
os primeiros casos na África. Febre baixa, dores musculares, dor de
cabeça, inflamação nos olhos e manchas na pele, chamadas de exantema –
quadro clínico de difícil diferenciação com a dengue e similar a um
quadro de alergia por também atingir a pele e os olhos.
Dado o período curto de sintomas e a falta de exames confirmatórios
disponíveis, a suspeita diagnóstica deve ainda levar em conta a
realidade local da ocorrência da doença e também considerar os
determinantes sociais como pobreza, déficit de saneamento básico e
oportunidade de acesso rápido e de qualidade à saúde. Assim, o
diagnóstico do Zika ainda é um desafio para os serviços de saúde, apesar
da evolução benigna dos seus sintomas.
O Brasil, a despeito do SUS ainda estar em construção e com inúmeras
demandas assistenciais, tem conseguido estabelecer associações entre a
infecção pelo Zika e complicações como a microcefalia e a Síndrome de
Guillain-Barré. Esta última é uma doença caracterizada pelo acometimento
dos nervos periféricos das pernas e dos braços que leva à fraqueza
progressiva, dificuldade de movimentação dos membros, podendo levar
inclusive à paralisia das pernas principalmente.
O Zika e a resposta inflamatória que nosso corpo produz ante ao vírus
podem causar lesões nos nervos caracterizando a Síndrome de Guillain
–Barré. São manifestações que se iniciam cerca de sete dias após a
remissão dos sintomas da infecção. Sabemos que assim como o vírus da
dengue, o Zika tem o que chamamos de tropismo, ou afinidade, pelos
nervos do nosso corpo e, portanto, causa esses danos neurológicos. Dessa
forma, presenciamos uma realidade nova em termos de saúde pública, uma
doença com complicações ainda pouco conhecidas e potencialmente
limitantes.
Relação com a microcefalia
Microcefalia é a anomalia congênita em que o cérebro não se
desenvolve adequadamente. As fontanelas (conhecidas como moleiras) se
fecham precocemente impedindo o cérebro de crescer e se desenvolver e,
como resultado, o perímetro da cabeça fica menor que o normal.
Ela é diagnosticada quando a circunferência da cabeça é menor do que o
esperado para idade gestacional, tempo de vida e sexo. Pode ser de
causas familiares, defeitos congênitos, síndromes genéticas, exposição a
toxinas e a agentes infecciosos na gestação. No caso das infecções
congênitas, o agente pode causar poucos ou nenhum sintoma na gestante,
mas afetar de diversas maneiras a formação do bebê.
De acordo com os estudos realizados até agora, o Zika vírus parece
estar nessa categoria, por esse motivo, só houve atenção maior à doença
após o nascimento dos bebês. A menos que a microcefalia seja familiar,
90% dos bebês comprometidos tem algum atraso no desenvolvimento
neurológico.
A microcefalia é um evento raro, a incidência estimada é de 0,1% de
casos graves na população geral. Em outubro desse ano, o estado de
Pernambuco identificou 28 casos em poucas semanas, o que chamou a
atenção da Vigilância Epidemiológica, que solicitou apoio ao Ministério
da Saúde para investigação.
Baseado em uma experiência anterior na Polinésia Francesa, em relatos
de aumento de incidência do vírus no Nordeste desde o início do ano, de
gestantes com filhos acometidos que referiam febre e exantema na
gestação e na identificação do vírus no líquido amniótico de duas
gestantes com fetos com microcefalia e que apresentavam história de
sintomas sugestivos na gravidez, é forte a suspeita de que o aumento de
casos estaria relacionado ao vírus Zika.
A microcefalia relacionada a esse vírus é uma doença nova que está
sendo descrita pela primeira vez na história e com base no surto que
está ocorrendo no Brasil. Não há tratamento específico para a doença ou
vacinas. Desse modo, medidas de vigilância epidemiológica, identificação
precoce dos casos e controle do vetor de forma coletiva são
importantes.
As medidas de controle individuais são importantíssimas, entre elas
os cuidados relacionados à proliferação dos mosquitos nos domicílios,
que devem ser mantidos limpos evitando locais em que a água possa ficar
parada e funcionem como criadouros, e também deve-se adotar medidas
individuais como uso de repelentes, mosquiteiros e inseticidas
domésticos.
O mosquito costuma picar no início e no fim da tarde, nesse horário o
cuidado deve ser maior, com fechamento e telas nas janelas, uso de
roupas de manga longa e repelentes que não devem ser colocados por baixo
da roupa, apenas na pele exposta. A Anvisa reforçou que não há qualquer
impedimento no uso de repelentes por gestantes desde que sejam seguidas
as normas dos fabricantes. A população deve procurar a assistência de
profissionais de saúde para saber como e qual repelente usar para cada
idade e gestação.
Ainda não há recomendação formal do Ministério da Saúde para evitar a
gravidez. Trata-se de uma decisão da família em conjunto com a equipe
de saúde que a atende. Apesar disso, alguns especialistas sugeriram
esperar a melhor elucidação dos casos para a programação de gravidez
neste momento.
Importante também evitar o estigma e dar suporte para as famílias
acometidas. Dados do Censo de 2010 demonstraram que 1,4% da população
brasileira tem algum tipo de deficiência mental ou intelectual. É
preciso dar condições para que essas pessoas sejam incluídas na
sociedade com boas condições de vida e de saúde, sem estigma e sem
preconceitos.
Infelizmente alguns mitos e boatos como “crianças em coma” após o
Zika ou que ele foi trazido pelos imigrantes são difundidos pelas redes
sociais e aplicativos de mensagens dos smartphones. É prudente a
checagem da informação em fontes confiáveis e reflexão ética se é algo
que vale ou não ser passado adiante. A resposta às epidemias deve ser
dada com cidadania e responsabilidade, nunca com sensacionalismo e
pânico.
No artigo Dengue e Chikungunya, Doenças Socioambientais,
mostramos que é inegável a responsabilidade individual de cada cidadão
em manter as casas limpas e sem possíveis criadouros, porém é
imprescindível que o poder público faça a sua parte por meio de planos
diretores que privilegiem a sustentabilidade, coleta regular de lixo,
fornecimento regular de água, educação em saúde, entre outros.
Por essas razões, a dengue, o chikungunya e o zika vírus não são
apenas um problema de saúde, mas verdadeiras doenças socioambientais.
Problemas complexos, em regra, exigem soluções integradas e
participativas e medidas de prevenção a médio prazo envolvendo os mais
diversos setores.
*Fábio Miranda Junqueira, Maria Carolina Pereira da Rocha e Paulo
Abati são médicos infectologistas e docentes na Faculdade de Medicina
da PUC-SP
Fonte: http://www.cartaeducacao.com.br/disciplinas/ciencias/a-origem-do-zika-virus-e-a-microcefalia/
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