Em 1964, um golpe de estado que derrubou o presidente João Goulart e
instaurou uma ditadura no Brasil. O regime autoritário militar durou até
1985. Censura, exílio, repressão policial, tortura, mortes e
“desaparecimentos” eram expedientes comuns nesses “anos de chumbo”.
Porém, apesar de toda documentação e testemunhos que provam os crimes
cometidos durante o Estado de exceção, tem gente que acha que naquela
época “o Brasil era melhor”. Mas pesquisas da época – algumas divulgados
só agora, graças à Comissão Nacional da Verdade – revelam que o período não trouxe tantas vantagens para o país.
1. “A ditadura no Brasil foi branda”
Pois bem, vamos lá. Há quem diga que a ditadura brasileira teria sido
“mais branda” e “menos violenta” que outros regimes latino-americanos.
Países como Argentina e Chile, por exemplo, teriam sofrido muito mais em “mãos militares”. De fato, a ditadura nesses países também foi sanguinária. Mas repare bem: também foi. Afinal, direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados por aqui: torturas e assassinatos de presos políticos – e até mesmo de crianças – eram comuns nos “porões do regime”. Esses crimes contra a humanidade, hoje, já são admitidos até mesmo pelos militares (veja aqui e aqui). Para quem, mesmo assim, acha que foi “suave” a repressão, um estudo do governo federal analisou relatórios e
propõe triplicar a lista oficial de mortos e desaparecidos políticos
vítimas da ditadura militar. Ou seja: de 357 mortos e desaparecidos com
relação direta ou indireta com a repressão da ditadura (segundo a lista
da Secretaria de Direitos Humanos), o número pode saltar para 957
mortos.
2. “Tínhamos educação de qualidade”
Naquele época, o “livre-pensar” não era, digamos, uma prioridade para
o regime. Havia um intenso controle sobre informações e ideologia – o
que engessava o currículo – e as disciplinas de filosofia e sociologia
foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização
Social e Política Brasileira, uma matéria obrigatória em todas as
escolas do país, destinada à transmissão da ideologia do regime
autoritário). Segundo o estudo “Mapa do Analfabetismo no Brasil”, do
Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), do
Ministério da Educação, o Mobral (Movimento Brasileiro para
Alfabetização) fracassou. O Mobral era uma resposta do regime militar ao
método do educador Paulo Freire – considerado subversivo -,
empregado, já naquela época, com sucesso no mundo todo. Mas os problemas
não paravam por aí: com o baixo índice de investimento na escola
pública, as unidades privadas prosperaram. E faturaram também. Esse
“sucateamento” também chegou às universidades: foram afastadas dos
centros urbanos – para evitar “baderna” – e sofreram a imposição do
criticado sistema de crédito.
3. “A saúde não era o caos de hoje”
Se hoje todo mundo reclama da “qualidade do atendimento” e das “filas
intermináveis” nos hospitais e postos de saúde, imagina naquela época.
Para começar, o acesso à saúde era restrito: o Inamps (Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável
pelo atendimento público, mas era exclusivo aos trabalhadores formais.
Ou seja, só era atendido quem tinha carteira de trabalho assinada. O
resultado era esperado: cresceu a prestação de serviço pago, com
hospitais e clínicas privadas. Essas instituições abrangeram, em 1976, a
quase 98% das internações. Planos de saúde ainda não existiam e o saneamento básico chegava a poucas localidades, o que aumentava o número de doenças. Além disso, o modelo hospitalar adotado relegava a assistência primária a segundo plano, ou seja, para os militares era melhor remediar que prevenir.
O tão criticado SUS (Sistema Único de Saúde) – que hoje atende cerca de
80% da população – só foi criado em 1988, três anos após o fim da
ditadura.
4. “Não havia corrupção no Brasil”
Uma características básica da democracia é a participação da
sociedade civil organizada no controle dos gastos, denunciando a
corrupção. E em um regime de exceção, bem, as coisas não funcionavam exatamente assim.
Não havia conselhos fiscalizatórios e, depois da dissolução do
Congresso Nacional, as contas públicas não eram sequer analisadas,
quanto mais discutidas. Além disso, os militares investiam bilhões e
bilhões em obras faraônicas – como Itaipu, Transamazônica e Ferrovia do
Aço -, sem nenhum controle de gastos. Esse clima tenso de “gastos
estratosféricos” até levou o ministro Armando Falcão, pilar da ditadura,
a declarar que “o problema mais grave no Brasil não é a subversão. É a
corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”.Muito pouco se falava em corrupção. Mas não significa que ela não estava lá. Experimente
jogar no Google termos como “Caso Halles”, “Caso BUC” e “Caso
UEB/Rio-Sul” e você nunca mais vai usar esse argumento.
5. “Os militares evitaram a ditadura comunista”
É fato: o governo do presidente João Goulart era constitucional.
Seguia à risca o protocolo. Ele chegou ao poder depois da renúncia de
Jânio Quadros, de quem era vice. Em 1955, foi eleito vice-presidente com
500 mil votos a mais que Juscelino Kubitschek. Porém, quando Jango
assumiu a Presidência, a imprensa bateu na tecla de que em seu governo
havia um “caos administrativo” e que havia a necessidade de
reestabelecer a “ordem e o progresso” através de uma intervenção
militar. Foi criada, então, a ideia da iminência de um “golpe comunista”
e de um alinhamento à URSS, o que virou motivo para a intervenção.
Goulart não era o que se poderia chamar de marxista. Antes de ser
presidente, ele fora ministro de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek e
estava mais próximo do populismo. Em entrevista inédita recentemente divulgada,
o presidente deposto afirmou que havia uma confusão entre “justiça
social” – o que ele pretendia com as Reformas de Base – e comunismo, ideia que ele não compartilhava: “justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. Há também outro fator: pesquisas feitas pelo Ibope às vésperas do golpe,
em 31 de março, mostram que Jango tinha um amplo apoio popular,
chegando a 70% de aprovação na cidade de São Paulo. Esta pesquisa,
claro, não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP).
6. “O Brasil cresceu economicamente”
Um grande legado econômico do regime militar é indiscutível: o aumento da dívida externa, que permaneceu impagável por toda a primeira década de redemocratização. Em
1984, o Brasil devia a governos e bancos estrangeiros o equivalente a
53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Sim, mais da metade do que
arrecadava. Se transpuséssemos essa dívida para os dias de hoje, seria
como se o Brasil devesse US$ 1,2 trilhão, ou seja, o quádruplo da atual
dívida externa. Além disso, o suposto “milagre econômico brasileiro” –
quando o Brasil cresceu acima de 10% ao ano – mostrou que o bolo crescia sim, mas poucos podiam comê-lo.
A distribuição de renda se polarizou: os 10% dos mais ricos que tinham
38% da renda em 1960 e chegaram a 51% da renda em 1980. Já os mais
pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, decaíram para 12% duas
décadas depois. Quer dizer, quem era rico ficou ainda mais rico e o pobre, mais pobre que
antes. Outra coisa que piorava ainda mais a situação do população de
baixa renda: em pleno milagre, o salário mínimo representava a metade do
poder de compra que tinha em 1960.
7. “As igrejas apoiaram”
Sim, as igrejas tiveram um papel destacado no apoio ao golpe. Porém,
em todo o Brasil, houve religiosos que criaram grupos de resistência,
deixaram de aceitar imposições do governo, denunciaram torturas, foram
torturados e mortos e até ajudaram a retirar pessoas perseguidas pela
ditadura no país. Inclusive, ainda durante o regime militar, uma das
maiores ações em defesa dos direitos humanos – o relatório “Brasil:
Nunca Mais” – originou-se de uma ação ecumênica, desenvolvida por dom
Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor presbiteriano
Jaime Wright. Realizado clandestinamente entre 1979 e 1985, gerou uma
importante documentação sobre nossa história, revelando a extensão da
repressão política no Brasil.
8. “Durante a ditadura, só morreram vagabundos e terroristas”
Esse é um argumento bem fácil de encontrar em caixas de comentário da
internet. Dizem que quem não pegou em armas nunca foi preso, torturado
ou morto pelas mãos de militares. Provavelmente, quem acredita nisso não
coloca na conta o genocídio de povos indígenas na Amazônia durante a
construção da Transamazônica. Segundo a estimativa apresentada na
Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.
Isso sem contar as outras vítimas da ditadura que não faziam parte da
guerrilha. É o caso de Rubens Paiva. O ex-deputado, cassado depois do
golpe, em 1964, foi torturado porque os militares suspeitavam que,
através dele, conseguiriam chegar a Carlos Lamarca, um dos líderes da
oposição armada. Não deu certo: Rubens Paiva morreu durante a tortura. A
verdade sobre a morte do político só veio à tona em 2014. Antes disso,
uma outra versão (bem mal contada) dizia que ele tinha “desaparecido”. Para
entrar na mira dos militares durante a ditadura, lutar pela democracia –
mesmo sem armas na mão – já era motivo o suficiente.
9. “Todos os militares apoiaram o regime”
Ser militar na época não era sinônimo de golpista, claro. Havia uma
corrente de militares que apoiava Goulart e via nas reformas de base um
importante caminho para o Brasil. Houve focos de resistência em São
Paulo, no Rio de Janeiro e também no Rio Grande do Sul, apesar do
contragolpe nunca ter acontecido. Durante o regime, muitos militares
sofreram e estima-se que cerca 7,5 mil membros das Forças Armadas e bombeiros foram perseguidos, presos, torturados ou expulsos das
corporações por se oporem à ditadura. No auge do endurecimento do
regime, os serviços secretos buscavam informações sobre focos da
resistência militar, assim como a influência do comunismo nos
sindicatos, no Exército, na Força Pública e na Guarda Civil.
10. “Naquele tempo, havia civismo e não tinha tanta baderna como greves e passeatas”
Estudantes que participavam de uma reunião da UNE são presos no interior de São Paulo. Foto: Cristiano Mascaro/DEDOC Abril
Quando os militares assumiram o poder, uma das primeiras medidas que
tomaram foi assumir a possibilidade de suspensão dos diretos políticos
de qualquer cidadão. Com isso, as representações sindicais foram
duramente afetadas e passaram a ser controladas com pulso forte pelo
Ministério do Trabalho, o que gerou o enfraquecimento dos sindicatos,
especialmente na primeira metade do período de repressão. Afinal, para
que as leis trabalhistas vigorem, é necessário que se judicializem e que
os patrões as respeitem. Com essa supressão, os sindicatos passaram a
ser compostos mais por agentes do governo que trabalhadores. E os
direitos dos trabalhadores foram reduzidos à vontade dos patrões.
Passeatas eram duramente repreendidas. Quando o estudante Edson Luísa de
Lima Souto foi morto em uma ação policial no Rio de Janeiro, multidões
foram às ruas no que ficou conhecido com o a Passeata dos Cem Mil. Nos
meses seguintes, a repressão ao movimento estudantil só aumentou. As ações militares contra manifestações do tipo culminaram no AI-5. O que aconteceu daí para a frente você já sabe.
E tem muita gente sem noção que pede a volta do regime. Militar tem cuidar é de quartel e da defesa da nação! Material bem esclarecedor! Gostei muito!
ResponderExcluirOidê Carvalho de Moura - professor de História e Filosofia CEM Florêncio Aires.